quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O NOVO ANO


                                                                                                                  Eheu fugaces... labuntur anni.
                                                                                                                                                              Horácio (65-8 a.C.)

 O que significa um novo ano? Apenas a mudança convencionada em um calendário? Felicitações e desejos de prosperidade, paz, saúde etc? Mais uma norma social? Ou um projeto de vida que costumamos fazer sempre de um dia para outro e, nesta oportunidade, o fazemos acreditando mais, por conta do maior prazo? Tudo isso junto. Somos, como dizia Pessoa, “escravos cardíacos das estrelas. Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; mas acordamos e ele é opaco, levantamo-nos e ele é alheio, saímos de casa e ele é a terra inteira, mais o sistema solar e a Via Láctea e o indefinido”. No fundo, as promessas de um novo ano, não aquelas desejadas aos outros, mas a nós mesmos, são promessas de conquistas próprias, as quais, o amanhecer do primeiro dia de janeiro nos encarrega de, como o sol, demonstrar a realidade das coisas. Se é importante sonhar? Sim, eu acredito que sonhos possam, de alguma forma, lograr, mas tudo é passageiro e a realidade implacável nos persegue avisando-nos disto. O próprio término do ano, não deixa de ser um anúncio apodíctico do efêmero. É certo, a vida prossegue veloz em seu curso instável. Talvez os loucos, as crianças, ou, quem sabe, os ingênuos não se libertem para essa escravidão. Talvez os mais incomodados se entorpeçam no final de cada ano - e em quase todos os dias do subsequente -, na embriaguez que os liberta da liberdade do real. Mas o que sei eu do real? Nada, a não ser que o tempo corre pondo “umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens”, mas, ainda assim, vamos, porque não, comemorar, cantar e brindar o nascer do novo ano.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O CASO ABDELMASSIH

 Não é propósito deste espaço a transcrição de artigos alheios, entretanto, vez por outra, não há como não ceder. O texto do Fernando de Barros e Silva pareceu-me preciso sobre o caso Abdelmassih, por isso segue na íntegra. Para além, faremos, a partir dele, uma série de reflexões sobre o processo penal no Brasil.

 Folha de São Paulo, segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

 FERNANDO DE BARROS E SILVA

 O caso Abdelmassih

 Vamos começar fazendo três perguntas: 1. Quantas pessoas estão encarceradas hoje no país, em regime de prisão preventiva, sem que ainda tenham sido julgadas? 2. Quantas, entre as pessoas que se encontram nessa condição, chegam a ter seus pedidos de soltura apreciados pelo Supremo Tribunal Federal? 3. E quantas conseguem ver seu caso atendido em apenas quatro meses pelo presidente da mais alta corte do país?

 A resposta talvez conduza à conclusão de que o doutor Roger Abdelmassih é um homem de sorte. Ou que pagou os advogados certos. O jornal "Le Monde" tinha razão, mas pegou leve ao dizer que nosso Judiciário é "preguiçoso". Às vezes, só às vezes, é ágil até demais.

 O habeas corpus de Gilmar Mendes, que, no recesso da Justiça, libertou o médico acusado de molestar sexualmente pelo menos 39 mulheres, causa óbvio mal-estar. As vítimas (supostas?) depositavam na expertise do doutor a esperança de engravidar - e a situação de vulnerabilidade física e emocional em que foram atacadas, conforme os relatos, confere ao escândalo feição especialmente repugnante.

 Os leigos estão cobertos de razão ao manifestar indignação diante da decisão judicial, não obstante suas "razões técnicas". Mendes sustenta que a prisão preventiva não pode representar a "antecipação da pena". Tem sido uma das suas brigas.

 Mas podemos inverter o raciocínio e indagar se o Judiciário, refém e cúmplice das chicanas de advogados "influentes", não patrocina, com suas peças intermináveis, um patético teatro da impunidade?

 Não há como fugir à evidência revoltante de que, tendo dinheiro e/ ou fama - e advogados a preço de ouro -, o sujeito, não importa o que tenha feito de terrível, cedo ou tarde se dá bem. Sim, sabemos que cabe à Justiça zelar pelos direitos dos indivíduos contra o clamor às vezes cego da maioria. Mas nossa prática jurídica não raro invoca esse princípio para dar guarida aos aspectos mais abomináveis do privilégio.


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

OS PARADOXOS DO NATAL

Aos cristãos para, quem sabe, uma interpretação (alegórica) do texto que permita a contradição:

"Ouvistes o que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao mau. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém te processar para tirar-te a túnica, cede-lhe também o manto. Se alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele, anda dois mil. Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja um empréstimo.

Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem para serdes filhos de vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos.

Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios publicanos? Se saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem isto também os pagãos?” (Mateus, Capítulo 5, versículos 38 a 47).


  O filho de Deus nasceu, pelo menos é como consta, em “um deserto subtropical onde jamais nevou, mas neve se converteu num símbolo universal do Natal desde que a Europa decidiu europeizar Jesus”, branco, de cabelos longos e olhos azuis.

  A neve que a maioria de nós nunca viu e que, por incrível que pareça, muitos adoram (!?), é retratada das mais diferentes maneiras: com luzes, algodão etc. Existem, mesmo, aqueles que compram máquinas destinadas ao fabrico de pequenos flocos de neve.

  A árvore que simboliza o espírito natalino, decoração quase que obrigatória nos lares brasileiros, é um pinheiro nativo do hemisfério norte.

  Papai Noel, o outro grande símbolo que enfeita casas, prédios e ruas, nos aparece vestido de gorro, luvas e polainas em pleno e abrasador verão brasileiro, carregado, pasmem, por renas que nunca vimos na vida, pois são animais que habitam o ártico.

  Há pessoas que mandam fazer chaminés em suas casas no nordeste do Brasil, na esperança, quem sabe, que faça um frio polar, ou, é bem provável, pensando no ingresso do “bom velhinho” com seus presentes (!!!).

  O natal é, hoje em dia, “o negócio que mais dinheiro dá aos mercadores que Jesus tinha expulsado do templo”.

  As comemorações, ao menos as que interessam, são profanas, sob medida, para produzir glutões e bêbados: cervejas, vodkas, whiskys... E, é claro, champanhes e vinhos; perus, queijos, ameixas, damascos, nozes... Ah, neste natal, principalmente, seria imperdoável esquecer os panetones.

  Próximo ao natal de 1980, portanto há 29 anos, um assassino, violentamente, tirou a vida de um dos grandes ídolos da música pop, que, não obstante tenha afirmado ser mais popular que Jesus, inspirado pelos ares desta época, festejou o natal deixando-nos uma reflexão e uma mensagem de paz que eu, embora não goste de citações sem tradução, verto no original para, afinal, aproveitando-me, porque não, do natal, desejar que homens e mulheres sejam mais fraternos, mais companheiros, mais humanos, ainda que humanidade seja, também, egoísmo e competição. Se tudo isso é contraditório, comemoremos então a contradição em nossos espíritos, esperando, porém, um bom ano, com menos sofrimento no mundo:

And so this is Christmas
And what have we done
Another year over
A new one just begun…/

And so happy Christmas
For black and for white
For yellow and red ones
Let's stop all the fight…/

And so this is christmas (war is over...)
For weak and for strong (...if you want it)
The rich and the poor one
The world is so wrong…/

And, so happy Christmas
We hope you have fun
The near and the dear one
The old and the young…/

A very Merry Christmas
And a happy New Year
Let's hope it's a good one
Without any fear


Obs. As frases entre aspas são de Eduardo Galeano. A canção Happy Xmas (War Is Over) é de John Lennon.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

SOBRE A GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO

   Não é incomum a altercação sobre as possibilidades do direito de greve no serviço público. Mais que isso, permanecem os questionamentos sobre a própria existência de tal direito. Mesmo porque, desmitificando, de logo, a compreensão que o exercício da greve no serviço público é uma conquista intangível da democracia, cabe firmar que vários ordenamentos de países democráticos não reconhecem o direito em questão. Nos Estados Unidos, berço dos direitos civis, a greve no serviço público federal é terminantemente proibida, passível até de prisão para o grevista. Na Alemanha, cujo direito constitucional exerce forte influência no sistema jurídico brasileiro, os funcionários estatutários não podem fazer greve em razão dos princípios tradicionais da administração púbica.

   Entre nós, a Constituição de 1988 concebeu o direito de greve para os servidores públicos, porém deixou a regulamentação para a legislação ordinária que nunca foi produzida, tanto pela inércia de iniciativa do Executivo, quanto pela falta de trabalhos no Congresso Nacional. Ante a ausência legislativa as opiniões variavam ora para reconhecimento, ora para a impossibilidade do exercício do direito de greve, nesse caso por ser a norma constitucional de eficácia contida, ou seja, condicionada a existência de regulamentação legal para viger. A última posição foi sempre aceita pelo Supremo Tribunal Federal. Mas, cansado de esperar a regulamentação, o Tribunal sinalizou para aplicação da lei geral de greve destinada ao trabalhador privado (acesse aqui o MI 712). A conseqüência de toda essa mixórdia – não obstante a decisão mais recente do Pretório Excelso sobre a restrição para as funções essenciais do serviço público (acesse aqui a decisão do STF) –, é o que hoje assistimos na prática: o exercício ilimitado do direito de greve pelos servidores públicos.

   É inegável o direito dos funcionários de reivindicar melhores condições de trabalho e, sobretudo, melhores vencimentos, ou ao menos, vencimentos compatíveis com as suas respectivas funções, corrigidos em razão da espiral inflacionária, que atendam, no mínimo, às necessidades básicas de uma família. No entanto, o instrumental para uma reivindicação de tal natureza não pode colidir, em nenhuma hipótese, com os direitos e interesses dos cidadãos. É que no estado democrático de direito o conflito entre os direitos dos servidores e os direitos dos cidadãos resolve-se, sempre, em favor dos últimos. O direito do cidadão, do contribuinte, do povo a ter serviços prestados por funcionários do Estado é maior que direito de greve destes últimos. “A opção pela carreira pública é personalíssima, ninguém nela deve permanecer quando entenda lhe está sendo exigido demasiado sacrifício”. O servidor público, já se disse, “é um servidor da comunidade e não servidor de si mesmo”, seus direitos são estritamente condicionados aos seus deveres junto à sociedade.

   A ausência de legislação regulamentadora, que se faz urgente, obriga ao poder público controlar as possibilidades de greve em cada caso concreto. Não é mais possível admitir a baderna protagonizada por grupos que atingem frontalmente o cidadão e a comunidade, tampouco o ócio de servidores que simplesmente cruzam os braços enquanto são pagos pelo combalido trabalhador brasileiro. Não é mais possível transigir com os pelegos em busca de cargos e outras vantagens pessoais. Não é mais possível permitir a intromissão da politicagem que sustenta interesses próprios e eleitoreiros.

   Por óbvio, os servidores não podem ficar a mercê de déspotas ou de administradores incompetentes. É fundamental que tenham amplo acesso e participação sobre a situação orçamentária e financeira do Estado, contando com rígidos mecanismos punitivos para os maus gestores, inclusive com a imprescritibilidade das infrações administrativas e dos crimes contra o erário por eles praticados. Todavia, já não se pode olvidar que o direito à greve, se é um direito, é um direito de defesa contra o Estado-Administração e não um direito de defesa contra o povo. Só nessa assertiva temos um bom começo para delinear seus limites.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

PARA NÃO VER DEUS DUAS VEZES

   Há uma pilhéria conhecida internacionalmente que diz: “bem-aventurados os bêbados, porque verão a Deus duas vezes”. Mas, o gracejo termina, ou deveria terminar, onde começa a atividade de dirigir um veículo automotor. Há anos assistimos, já cansados, no Brasil, a divulgação dos altos índices de acidentes de trânsito com milhares de mortos e feridos. E uma das principais causas para os acidentes não é outra senão a embriaguez. A associação entre o uso de bebidas alcoólicas e a condução de veículos motorizados está relacionada, nos Estados Unidos, a 25 mil mortes e 150 mil pessoas permanentemente incapacitadas por ano. No Estado da Califórnia, estima-se que cerca de 45% dos acidentes com vítimas e 70% das pessoas mortas em acidentes de trânsito apresentavam alcoolemia sangüínea significativa, isso para não mencionar o uso de outras drogas.
 
   Entre nós, há uma estimativa mais alta, calcula-se que 75% dos acidentes de trânsito com vítimas fatais esteja relacionado com a embriaguez. É que, no Brasil, aproximadamente 40% das ocorrências policias, em geral, estão amalgamadas ao uso da bebida alcoólica. Em Alagoas, não é diferente. As autoridades policiais, os promotores e os juízes criminais são testemunhas diárias dos homicídios, lesões corporais, estupros, entre vários outros delitos, perpetrados, banalmente, sob a influência do álcool e que atingem, sobretudo, as camadas economicamente desfavorecidas da população. Aliás, é essa uma das diferenças verificadas para os crimes de trânsito, pois estes envolvem pessoas de todos os estratos sociais, embora, quem sabe senão por isso, tenham penas demasiadamente brandas, não obstante a gravidade do perigo e do dano que deles possam resultar.

   Já propusemos junto ao Gabinete de Gestão Integrada – GGI, no Governo de Alagoas, baseados em experiência do interior de São Paulo e de Pernambuco, anteprojeto de Lei para proibir, em determinados horários, a venda de bebidas alcoólicas nas localidades municipais afetadas por violência decorrente da embriaguez. Não obstante tenha sido aprovada pelo Legislativo Estadual e sancionada pelo Executivo, a burocracia policial alagoana tem dificuldades no cumprimento da restrição e setores desinformados da imprensa acusaram a Lei de descriminar a periferia, desconhecendo que o cidadão de bem que habita as regiões mais violentas seria o grande beneficiado pela medida.

   Nosso país ainda permite a veiculação de propaganda de bebidas sem limite de horário, associando o álcool às mulheres, à fama e ao viver bem, embora, por mais absurdo que seja, haja decisões que proíbam a utilização do bafômetro contra a vontade do motorista bêbado, baseadas no pífio argumento de que ninguém pode fazer prova contra si mesmo, como se não houvesse um escalonamento de normas na Constituição e o direito à vida não fosse superior a um direito processual.

   O governo federal, ainda que tardiamente, editou Medida Provisória proibindo a venda de bebidas, nas estradas federais, cujo teor alcoólico seja igual ou superior a 0,5%, o que abrange quase todos os tipos disponíveis no país – as cervejas, mais tradicionais, têm graduação a partir de 4,5%. A medida é boa e o governo do Estado deveria adotá-la para as vias estaduais o mais rápido possível. É óbvio que posições desta natureza não resolvem o problema isoladamente, como denunciam as já obtusas críticas, mas, de certo, constituem imposição, desde que haja fiscalização e punições, em favor da vida e da incolumidade física das pessoas. Precisamos fortalecer a crença de que os direitos individuais somente se sustentam quando observado o direito à coexistência. Se os borrachos pretendem ver Deus, ainda que duas vezes, que vão sozinhos na sua estrada sem volta.


segunda-feira, 30 de novembro de 2009

CASO CESARE BATTISTI: POLÍTICA ELEITORAL , EMOÇÃO E ATECNIA

   A questão em torno do caso Battisti não é outra senão uma questão político-eleitoral, máxime por conta das eleições de 2010. Mas, há nela, também, um componente de emoção provocado pelo excesso midiático em torno do caso. Emoção, de um lado, de esquerdistas dispostos às mais absurdas escusas para o perdão de um novo ícone formado pela imprensa, de outro, dos idiotas de direita que vendem o capitalismo e suas almas como o mais bem acabado e irreversível modelo econômico e se acham inteligentes e perspicazes em face de um Presidente da República que eles teimam em retratar por bronco e atrasado. Resumindo, não temos tido oportunidade de uma discussão mais afeita aos meandros técnicos do direito penal e do direito internacional público, senão mais um debate grosseiro entre partidários da oposição e governistas visando à eleição presidencial, de autoridades italianas e brasileiras e de obtusos de direita e delirantes de esquerda aqui no Brasil.

   Acertou, parece-me, o Pretório Excelso, quando, por apertada maioria, decidiu que os delitos atribuídos a Battisti tratavam-se de crimes comuns. O parâmetro internacional da preponderância, que rege o processo extradicional no plano do direito internacional, determina a possibilidade da extradição quando o fato constituir, principalmente, infração da lei penal comum. Não tenho a mínima certeza se Battisti, de fato, foi o responsável pelos assassinatos pelos quais foi condenado. Não tenho dúvidas, entrementes, de que o estado de direito estava comprometido em uma Itália conturbada conforme denunciou a Anistia Internacional. Mas ele foi condenado e, em pelo menos uma das condenações, o móvel do homicídio foi a vingança, absolutamente despida de qualquer conexão com crime político. Isto é o que basta, pois não cabe ao Estado requerido a análise acerca do mérito da decisão proferida no Estado requerente, que, neste ponto específico, apenas necessita provar que tem jurisdição.

   Doutra banda, embora não disponha de elementos para fazer uma afirmação apodíctica, as notícias veiculadas nos meios de comunicação levam-me a crer que a prescrição da pretensão punitiva ocorreu no caso em testilha, como, inclusive, votou o Ministro Marco Aurélio. De logo, esclareço que a Lei 6.815/80 dispõe, em seu artigo 77, VI, que não será concedida a extradição se estiver extinta a punibilidade pela prescrição regida pela lei brasileira ou pela legislação do Estado requerente. Pois bem, por uma simples consulta ao artigo 109, I, do Código Penal Brasileiro, vislumbra-se que a prescrição longissimus tempus ocorre após vinte anos para todos os delitos prescritíveis com penas máximas em abstrato superiores a doze anos, como é o homicídio. Recordem que as condenações ocorridas foram por homicídio. Se for correta a informação de que a última sentença condenatória, de primeiro grau, é datada de 1988, os delitos estão prescritos, pois o acórdão confirmatório posterior não é causa suspensiva nem interruptiva da prescrição. O fluxo do prazo prescricional só é interrompido pelo acórdão quando este, modificando a sentença absolutória, condena o réu.

   Finalmente é necessário esclarecer que o Supremo Tribunal Federal só tem a derradeira palavra em hipótese de extradição, vinculando, inclusive, o Presidente da República, quando, em homenagem ao status libertatis, a decisão é denegatória. Decidindo, o STF, pela possibilidade da extradição, cabe ao Presidente, no exercício de seu poder político e na sua prerrogativa exclusiva de regência das relações do Brasil com os outros estados soberanos (CF, art. 84, VII), deferir ou não a medida.

   O Presidente, é cediço, representa todos os brasileiros perante os demais países. Luis Inácio Lula da Silva, gostem dele ou não, encarna bem a representatividade do Brasil, pois carrega consigo 58 milhões de votos dos brasileiros, algo próximo à totalidade da população italiana, isso para não mencionar os seus atuais índices de aprovação.

   Pela apertada decisão do Supremo quanto ao próprio conhecimento do processo de extradição em face do refugio concedido, pela divisão verificada na Corte quanto à definição da natureza do crime, pela prescrição existente ou brevemente vindoura, pela postura bisonha das autoridades italianas, pela posição de mais de uma década do governo da França, que, com base na Doutrina Miterrand, acolhia ativistas de esquerda que tivessem abandonado a luta armada, pelo mau exemplo do governo Fernando Henrique no caso dos seqüestradores canadenses, pelo perdão aos torturadores da ditadura militar brasileira e a sórdida equiparação com eles dos que a ela resistiam, pela valoração política que a vida e não a academia o ensinou, Lula, penso eu, não concederá a extradição de Battisti.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

ZUMBI DOS PALMARES E A LIBERDADE

  A liberdade, não há questionamentos, é um dos pilares essenciais no Estado Democrático de Direito forjado pela modernidade no ocidente. Embora conceituada como direito fundamental do ser humano e retratada nas Declarações de Direitos e nas constituições da maioria dos estados soberanos, a liberdade é, parece-me, mais fácil de ser sentida do que ser explicada. No modelo do Estado Democrático de Direito a noção de liberdade não pode ser compreendida sem ter conta a noção de legalidade. Se o projeto da modernidade carecia de um ser humano autônomo, a liberdade somente poderia ser entendida como ausência de obstáculo a vontade do indivíduo. Mas, será livre aquele que pode fazer o que quer, ou será escravo dos seus desejos? Movimentamos nossos passos com autodeterminação, ou não passamos de marionetes comandadas pela força oculta do inconsciente?


  A modernidade nos legou a autonomia, nos fez crer no poder ilimitado da razão, porém no nosso tempo pós-moderno, heterogêneo, dinâmico, desordenado, essencialmente incontrolável e indeterminável e, por isso, assustador, nos vemos, e pior, nos sentimos cercados por muitos muros. Rodeia-nos os tijolos dos condomínios distantes, as cercas elétricas de prédios e casas, a blindagem de nossos carros. Há, ainda, as muralhas invisíveis, aquelas que fazem o cerco oprimindo-nos a consumir de sanduíches intragáveis, a fármacos e próteses que prometem beleza e sexualidade infinita. Não é à toa que nem as endorfinas, nem as drogas (legais e ilegais), nem sequer a ignorância, nos liberta daquele vazio, daquela insatisfação que, embora momentânea, aprisiona nossa alma.

  Foi sentindo e não explicando a liberdade que os negros de Palmares e dos demais quilombos brasileiros lutaram contra o europeu escravocrata. Talvez por isso, muitos não compreendam que eles não poderiam reclamar a liberdade como categoria universal, ou mesmo implantá-la, plenamente, para a sociedade que haviam edificado. Suas aspirações não são outras, senão a liberdade “elementar sem a qual a existência humana já não tem sentido”. Entrementes, a reação dos quilombos afigura-se como etapa fundamental para a emancipação dos negros. Ela foi símbolo das insurreições posteriores e, certamente, decisiva para a abolição.

  Desde que a escravatura tornou-se o sistema de exploração geral das terras, introduzido em Alagoas por volta de 1570, houve, como conseqüência automática, a fuga dos negros para formação de quilombos. Eram povos vindos de todos os cantos da África, com religiões, línguas, costumes e culturas diferentes, convergindo, após as evasões, para um ponto distante na floresta brasileira. Sua união é marcada por, praticamente, uma única aspiração em comum: o sentimento de liberdade.

  No dia 20 de novembro de 1695, portanto há três séculos e quatorze anos, Zumbi morreu combatendo o poder escravocrata em terras dos Caetés, os índios que devoraram antropofagicamente uma das mais simbólicas personificações do poder europeu em solo pátrio.

  Zumbi, que nasceu livre em Palmares, tinha, por mais paradoxal que isso possa parecer, a liberdade como prisão. Sua guerra contra o inimigo, na visão de Benjamin Péret, é uma luta obrigatória, um combate sem escolhas, uma vez que sua autoridade no quilombo residia, principalmente, na recusa da paz aceita por Ganga-Zumba e na destituição deste último, para a qual colaborou. A campanha armada de Zumbi, não se pode duvidar, tinha como estandarte a vitória com a conseqüente realização do sonho de liberdade, ou a morte, preferível ante ao jugo do opressor. É um legado contra toda opressão material, resta-nos, ainda, aprender sobre o banzo que, tal qual componente atávico, se manifesta, larga e estranhamente, entre os brasileiros.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

EXPANSÃO PENAL VERSUS INTERVENÇÃO MÍNIMA

O artigo que segue é resumo de parte do que será tratado em nosso livro “Direito Penal Constitucional”, com publicação prevista para os próximos seis meses. Sintetizo, aqui, a questão confundida por setores da doutrina entre intervenção mínima e expansão penal. Em escrito já publicado pela Revista do Mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas, aliás, já tive oportunidade de fazer ver a devida compatibilidade entre o princípio constitucional penal da intervenção mínima e a tendência expansionista do Direito Penal contemporâneo. Essa discussão será aqui relançada com algumas propostas para reflexão.




É preciso distinguir a intervenção mínima, como meta de política criminal, do princípio constitucional da intervenção mínima, embora, por evidente, guardem estreita relação. Uma política criminal que se caracterize pela diminuição do Direito Penal nos parece sempre bem vinda por todos os problemas gerados pela aplicação das sanções penais, mormente pela pena privativa de liberdade. Entre nós, uma política criminal dessa natureza sempre foi encorajada por setores da doutrina, mas, na realidade, nunca encontrou eco nas ações do governo que, ao contrário disso, em todo tempo, encampou atuações panpenalistas.

A intervenção mínima como política criminal não se apóia no velho argumento iluminista, como faz ver Zaffaroni, e, sim, no fato de que, enquanto houver modelos ou formas de decisão de conflitos mais violentas, é necessária a permanência do Direito Penal como programação da operacionalidade do órgão judiciário. No momento em que o conflito se situar fora do poder verticalizador do sistema penal, submetendo-se a soluções menos violentas, ou mesmo liberado, quando não for preciso uma solução, é possível contrair o discurso jurídico-penal e diminuir a abrangência penal. (ver ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas – Deslegitimación e dogmática jurídico-penal, 2ª ed., Bogotá: Temis, 1993, p. 84).

Já o princípio constitucional da intervenção mínima, informado pela racionalidade dessa política criminal, no marco do Estado Democrático de Direito, substancializa o princípio da legalidade penal para, intra-dogmaticamente, impor ao legislador uma rígida predeterminação acerca do processo de qualificação do delito, somente autorizando-o a criminalizar condutas a partir das hipóteses de ofensas mais graves aos bens jurídicos com status constitucional (os mais importantes) e, ainda assim, quando outras respostas (v.g. civil, administrativa, mediação etc) não forem satisfatórias para a solução do conflito (subsidiariedade e adequação).

Os parâmetros de fabrico da criminalização ditados pelo princípio pretendem separar uma ampliação do Direito Penal sem contato com a realidade, irracional e, portanto, esquizofrênica, de uma expansão baseada nas necessidades criminalizadoras advindas das complexidades da sociedade atual, de novas realidades ou mesmo de situações antigas, mas, em face do contexto moderno, que reclama, racionalmente, a intervenção penal.

Nessa lógica, não há nenhuma antinomia entre o princípio da intervenção mínima e uma expansão do Direito Penal, o qual sempre é preferível ante a alternativas piores, como o surgimento da vindicta privada em alta escala (v.g. vingadores, grupos de extermínio, milícias, deliberações penais marginais etc), ou até pela possibilidade de mecanismos severos de controle e vigilância do comportamento humano por parte do Estado, como forma preventiva da conduta infracional.

Os freios impostos pelo princípio são, antes de qualquer coisa, pressupostos fundamentais para a construção do delito baseados na proporcionalidade entre a liberdade individual e a liberdade do alter ou, dizendo de outra maneira, entre a liberdade do indivíduo e a possibilidade de coexistência.

A própria Constituição, ainda como imposição de conteúdo, não olvida a necessidade de criminalização para preservação dos direitos essenciais à convivência, determinando, de certo modo, um alargamento do Direito Penal sem perder de vista as irradiações do princípio na diminuição de criminalizações.

Uma resposta para enfrentamento do problema da criminalidade que ameace os interesses, efetivamente, mais caros de uma sociedade, e não aqueles que ponham em xeque a autoridade estatal pode ser encontrada, sem máculas, nos princípios constitucionais penais. Propus, por isso, em tese de doutorado, uma divisão das infrações penais segundo as possibilidades de sanção. Sugeri que fosse designadas: a) infrações de baixa intensidade punitiva; b) infrações de média intensidade punitiva; c) infrações de intensidade punitiva moderada e d) infrações de alta intensidade punitiva.

As primeiras abrangeriam todas as infrações penais com previsão de penas de multa e prisão simples, assegurando-se que a prisão simples somente poderia vingar com a quebra da pena de multa ou restritiva de direito. Ante tal pressuposto, segue a possibilidade de flexibilização de algumas garantias, a previsão de procedimentos judiciais céleres e amplos mecanismos de transação. Nesta seara, se amoldariam todos os delitos praticados pelas pessoas jurídicas e todas as contravenções penais.

As segundas compreenderiam os crimes hoje chamados de infrações de menor potencial ofensivo, delitos com previsão de pena de prisão nunca superior a dois anos, bem assim, aqueles crimes cuja pena mínima não fosse superior a um ano e se amoldasse à possibilidade de Suspensão Condicional do Processo. A resposta continuaria a ser a prevista na Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95).

As infrações de intensidade punitiva moderada seriam todas aquelas não contidas entre as segundas e cuja pena máxima privativa de liberdade, prognosticada em abstrato, não ultrapassasse oito (08) anos. Para este grupo aplicar-se-ia as regras penais vigentes, inclusive no que tange às garantias e à execução da pena.

Por fim, as infrações de alta intensidade punitiva alcançariam todos os crimes com penas máximas superiores a oito (08) anos. Nelas, observando-se, estritamente, os princípios constitucionais penais, o legislador poderia flexibilizar algumas garantias processuais, por exemplo, ampliando as possibilidades de provas relativas ao sigilo fiscal, bancário e de comunicações – o que seria possível estender às infrações de intensidade moderada –, e permitir ao juiz, ao examinar cada caso concreto, cotejando-o com os princípios e os mandamentos constitucionais de criminalização, determinar a prisão provisória pelo dobro do prazo atualmente previsto; antecipar a execução a partir da sentença condenatória não transitada em julgado; impossibilitar a progressão senão quando cumprida dois terços da pena cominada; determinar, por prazos curtos, regimes prisionais diferenciados; estabelecer fiscalizações mais rígidas no que toca à liberdade condicional, além de outras medidas, de igual força, para responder, proporcionalmente, ao delito praticado, sem instituir o estigma de “inimigo” ao infrator, nem macular qualquer garantia constitucional.

As sociedades modernas carecem de respostas mais rápidas e efetivas. As mudanças de paradigma em face da complexidade dos novos fenômenos sociais, no entanto, não deve nos deixar tentados às soluções alienígenas, é preciso ir em busca das nossas próprias respostas sem quebrar o pacto racional que reconhece o ser humano e sua dignidade como fim do Estado.

No Brasil contamos com um Sistema de Justiça Criminal inoperante, e disso decorre o mesmo problema que nos persegue a tantos lustros, não cumprir as normas instituídas. Temos um sistema processual, não obstante algumas mudanças bem vindas, atrelado à década de quarenta e, ainda, extremamente cartorial marcado pelo abusivo número de recursos que, na prática, vem inviabilizando a realização do direito material. Pari passu às modificações na dogmática penal, necessárias e já em curso, consoante sinalizou a própria Constituição com os princípios constitucionais penais e os mandamentos de criminalização, não podemos esquecer as necessárias transformações no direito instrumental, mas este já é assunto para outro momento.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

PARA A CÁTEDRA DO PROCESSO PENAL

Em cinco de novembro de 1993, há exatamente dezesseis anos, o ex-governador da Paraíba Tarcísio Burity, do PMDB, almoçava em um restaurante, em João Pessoa, acompanhado por conhecidos. Por volta das 14 horas, ingressou no estabelecimento o então governador Ronaldo Cunha Lima, também do PMDB, e disparou dois tiros, atingindo o seu antecessor de surpresa, impossibilitando qualquer reação defensiva, deixando-o em coma por duas semanas, segundo a Procuradoria da República.

O Ministério Público federal apresentou denúncia contra Cunha Lima no Superior Tribunal de Justiça, instância competente para julgar os governadores pelos crimes comuns. O STJ pediu, então, autorização à Assembléia Legislativa da Paraíba para processá-lo, mas o pedido foi negado. Entendendo não restar outro caminho, o Tribunal determinou sobrestamento dos autos enquanto ele estivesse no exercício do cargo.

No ano de 1994, Cunha Lima renunciou ao cargo de governador para concorrer ao Senado. Os meses que permaneceu sem cargos, no entanto, não bastaram para que fosse julgado. Eleito e diplomado senador, o foro deslocou-se para o Supremo Tribunal Federal, e, em 1995, os autos lá chegaram. No mesmo ano, o STF solicitou licença ao Senado para julgá-lo, entretanto o Senado negou o pedido, com o disparatado argumento de que postulação semelhante havia sido negada pela assembléia paraibana. Mais uma vez os autos foram sobrestados. Porém, em face da Emenda Constitucional 35, de 2001, que permitiu ao Supremo julgar parlamentares sem necessidade da licença prévia, a ação tornou a tramitar no ano de 2002.

A tramitação processual no STF arrastou-se por mais de 5 anos e o julgamento do acusado foi designado, coincidência ou não, para o dia 5 de novembro de 2007, quando o crime completou 14 anos. Todavia, cabalisticamente, 5 dias antes do julgamento, Cunha Lima renunciou ao cargo de deputado federal que então exercia, obrigando, segundo o entendimento formal, o deslocamento de foro, agora para a Justiça Estadual de 1ª instância.

Como se a kafkiana legislação brasileira sobre a prerrogativa de foro não bastasse, questionado acerca da renúncia, Cunha Lima afirmou, desdenhando: “quero ser julgado por meus iguais, o povo”, enquanto o Ministro Relator, Joaquim Barbosa, agastado, considerou a fala “um escárnio para com a justiça brasileira e especialmente para com o Supremo Tribunal Federal”, esperando “que haja juízes corajosos e independentes na Paraíba para julgá-lo”.

Os discursos do réu e do Ministro, sendo diferentes, se complementaram e confirmaram uma tese. O primeiro defendeu, no fundo, que é possível burlar a lei valendo-se dela própria. O segundo, com manifesta revolta, mas sem contestação, aquiesceu, como se não houvesse possibilidades interpretativas ao seu dispor.

“Interpretar uma expressão do Direito não é outra coisa senão revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta”. Os valores, afirmava Reale, não se explicam segundo nexos de causalidade e isso conduz o juiz à missão de, na aplicação da norma, vencer os óbices criados por leis prenhes de individualismos. Se a renúncia foi uma burla, como reconheceu o próprio Ministro, a solução para o caso seria a prorrogação da competência do STF, com o julgamento do acusado na Suprema Corte, afinal, ninguém pode tirar proveito de sua própria torpeza.

O ministro mudou e sustentou a tese defendida por nós, a da prorrogação da competência, mas foi vencido e o Supremo Tribunal, que ainda tinha a chance julgar Cunha Lima determinou o encaminhamento dos autos para o Tribunal do Júri de João Pessoa. Não obstante o promotor tenha ratificado a denúncia e o juiz já tenha o pronunciado, dificilmente ele será condenado pelo crime. As im(p)unidades, a demora processual, robustecida com a infinidade de recursos previstos no nosso ordenamento e a idade de agora do réu, que reduz os prazos prescricionais, conspiram para que ele sequer seja julgado no pertinente ao mérito. A questão torna patente a incapacidade do STF para esses julgamentos e deixa nítida a necessidade de restrição ou mesmo de abolição do foro privilegiado, afinal, como quer Cunha Lima – mesmo que suas intenções não tenham sido nada nobres –, aqueles que julgam o povo devem julgar os governantes, seus iguais.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O JUIZ E AS PERGUNTAS ÀS TESTEMUNHAS

O artigo que segue foi publicado pelo Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCcrim, nº 199, de junho de 2009. Minha posição, consoante será abordado, é radicalmente contrária a de muitos processualistas penais pátrios, os quais, ao meu sentir, fincaram entendimento apressado sobre a matéria, entendimento que vem, inclusive, influenciando, negativamente, a jurisprudência em formação no Superior Tribunal de Justiça (vide HC 121216/DF). O texto foi escrito, portanto, como insurgência contra essa “onda”, havida, ingenuamente, como moderna e capciosamente como fundada no sistema acusatório.

Não nos convence e consideramos como errôneas certas manifestações doutrinárias de que, com a reforma processual penal de 2008, somente caberia ao magistrado fazer perguntas às testemunhas e ao ofendido por derradeiro e, tão só, em complementação às perguntas das partes, em verdadeira abolição do sistema presidencialista de inquirição.

Para além de confundir sistemas alienígenas, especialmente o norte-americano, com o nosso, onde é característica a atividade probatória do juiz, mantida, diga-se de passagem, de lege lata – e necessária, principalmente se considerarmos as deficiências do atendimento jurídico aos mais necessitados no país –, tais interpretações derrapam na devida interpretação sistemática. Verifiquemos, pois, didaticamente, o porquê.

No interrogatório, indiscutivelmente considerado, também, como meio de prova, é o juiz o protagonista das perguntas ao acusado, conforme revela, expressa e cristalinamente, o artigo 188 do Código de Processo Penal:

Art. 188. Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante.

No plenário do Tribunal do Júri, durante a fase de produção de provas, é o juiz quem indaga, em primeiro lugar, as testemunhas e o ofendido, consoante dispõe expressamente o artigo 473, com redação já dada pela reforma, verbis:

Art. 473. Prestado o compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução plenária quando o juiz presidente, o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor do acusado tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido, se possível, e inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação.

O subsistema das testemunhas, inserido no Código (CPP, arts. 202 - 225), não deixa dúvida da fundamental participação do juiz. Percebe-se, com clareza meridiana, da simples leitura dos artigos 205, 209 e o seu § 1º, a possibilidade que detém o magistrado dele próprio ouvir as testemunhas:

Art. 205. Se ocorrer dúvida sobre a identidade da testemunha, o juiz procederá à verificação pelos meios ao seu alcance, podendo, entretanto, tomar-lhe o depoimento desde logo.

Art. 209. O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes.

§ 1o Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem.

Diante disto e de todo o sistema processual brasileiro, é inescondível tanto a possibilidade instrutória do juiz, quanto o sistema presidencialista de inquirição. Indaga-se então: de onde é que se extrai a interpretação de que o juiz perguntará por último, ou, ainda pior, de que perguntará somente em complementação às partes, se nenhuma norma assim determina? Será que é possível tal interpretação ante a nova redação do artigo 212 e a introdução do seu parágrafo único? A resposta, sem a mais remota dúvida, é não. Prescreve o mencionado dispositivo:

Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.

Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.

É de uma evidência incisiva que o legislador de reforma modificou a antiga redação do artigo apenas e tão somente para dar dinamismo à audiência, evitando, com isso, as anacrônicas “reperguntas” feitas pelo magistrado às testemunhas e ao ofendido, porquanto era defeso às partes “perguntarem”, ou, para ser redundante, perguntarem diretamente, sem a intermediação do juiz. Tanto que assim estava redigido o artigo 212 antes da reforma:

Art. 212. As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o processo ou importarem em repetição de outra já respondida.

A antiga redação, como se nota, não menciona nada sobre as perguntas do próprio juiz, como, da mesma maneira, a nova redação em nada dispõe sobre as perguntas do magistrado. A inserção, nova, do parágrafo único está estritamente atrelada, é importante observar, às perguntas das próprias partes, as quais podem ser complementadas pelo juiz ao final, acaso existam pontos duvidosos, como aliás, já se fazia, antes da reforma, na práxis forense. O parágrafo, como é cediço em técnica legislativa, apenas estar a complementar o sentido do caput. De nenhum modo ele diz respeito às perguntas iniciais do magistrado, de maneira alguma há vedação por ele, ou por qualquer outra norma, destas perguntas. Quando o parágrafo registra: “o juiz poderá complementar a inquirição”, é óbvio que se reporta a inquirição das partes e não a dele, porquanto antes já o fizera.

A interpretação para a nova redação do dispositivo não pode se esquivar da inevitável observação sistemática acima exposta, a qual não permite outra leitura senão a de que o juiz ouve primeiramente as testemunhas e o ofendido, e, após as perguntas das partes, pode, ainda, complementar a inquirição, acaso reste de tais indagações pontos não esclarecidos ou controversos. Resumindo, para qualquer tipo de procedimento, com as claras palavras de Silva(1): “o juiz faz as perguntas para a testemunha em primeiro lugar. Em seguida as partes perguntam diretamente para a testemunha. No final, a lei ainda prevê a possibilidade de o juiz reinquirir a testemunha sobre fato complementar”.

Não é de olvidar, ademais, que a regra processual – cogente –, determina que o juiz será o responsável pelo ditado ao auxiliar de audiência de qualquer das respostas das testemunhas ou do ofendido, seja quem for que fizer a pergunta. Não houve modificação alguma na redação do artigo 215, verbis:

Art. 215. Na redação do depoimento, o juiz deverá cingir-se, tanto quanto possível, às expressões usadas pelas testemunhas, reproduzindo fielmente as suas frases.

Não causa estranheza, em interpretações apressadas, a contradição de se pretender garantista e querer, ao mesmo tempo, transportar para nós, a-histórica e acriticamente, um sistema havido como antigarantista no processo penal, como o sistema norte-americano, em nada simétrico ao nosso. De há muito, adverte Ivo Dantas(2) de que não é possível transportar “um instituto jurídico de uma sociedade para outra, sem se levar em conta os condicionamentos a que estão sujeitos todos os modelos jurídicos”. É impressionante como o nosso “complexo de colonizados” ainda nos conduza a uma admiração irracional de tudo que é produzido nos países centrais, em especial nos EUA. Como os escritórios foram invadidos pelo office, nossos prédios carecem ser chamados de words trades centers, e agora, talvez por isso, se imagine que a reforma processual tenha nos legado o sistema do cross-examination.

Digressões à parte, é impossível, entre nós, prescindir da atividade probante do juiz, ainda que não seja ela a principal. Pertinente a inquirição das testemunhas, em especial, sabedores das possibilidades de condução que detém as partes para satisfazerem somente os que lhes interessa, afigura-se imprescindível a participação de um órgão imparcial nas perguntas inaugurais, máxime porquanto o faz perante as partes e dentro da oxigenação processual que não mais pode ser confundida com o sistema inquisitorial, utilizado, via de regra, somente como figura de retórica por parte da doutrina.

Quem tem vivência em salas de audiência sabe, por certo, da importância das perguntas iniciais do magistrado às testemunhas para as próprias partes. São elas que possibilitam o desdobramento da reconstrução histórica dos fatos – algo, no mínimo, difícil para quem indaga parcialmente –; são elas que permitem que as partes, posteriormente, consigam detectar os seus reais pontos de interesses; são elas que contribuem para que as partes demonstrem, posteriormente, as contradições existentes; são elas, enfim, que iluminam os passos a ser seguidos, em momento ulterior, pela acusação e pela defesa.

O juiz, asseverou Nalini(3), é “um garante da Justiça, avalista do direito, o protagonista sem cuja altaneria de pouco serve o instrumental posto a serviço do cidadão”. Ele não pode ser um espectador pusilânime da controvérsia judicial, devendo assumir, também no campo probante, uma posição ativa. Elementos essenciais da sua sentença, como as circunstâncias judiciais na aplicação da pena, os efeitos da condenação, a fixação de uma quantia mínima referente ao dano, a detecção dos requisitos das excludentes de ilicitude e de culpabilidade, entre vários outros, são de sua responsabilidade e não podem ser deixados ao exclusivo alvedrio das partes. O juiz é, inegavelmente, um agente com dever social e, portanto, um dos responsáveis pelas transformações ocorridas na sociedade humana. Sua sentença deve transportar, o quanto isso for possível, uma resposta justa para o conflito. Pretendê-lo inerte é afastá-lo a sorte da parcialidade da acusação e da defesa, é deixar seu decisum enfraquecido pela inabilidade de quem não sabe, como ele, o que se faz necessário conter, é, enfim, deixar o indivíduo sem o direito devidamente reclamado, especialmente na seara penal, onde em jogo está a liberdade do ser humano.

NOTAS____________________________________________________________________________________

1. SILVA, Ivan Luís Marques. Reforma Processual Penal de 2008. São Paulo: RT, 2008, p. 77.

2. DANTAS, Ivo. Direito Constitucional Comparado – Introdução. Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 66

3. NALINI, José Renato. O Juiz e suas atribuições funcionais. Introdução à Deontologia da Magistratura. In: NALINI, José Renato (Org.). Curso de Deontologia da Magistratura. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 2.