quinta-feira, 5 de novembro de 2009

PARA A CÁTEDRA DO PROCESSO PENAL

Em cinco de novembro de 1993, há exatamente dezesseis anos, o ex-governador da Paraíba Tarcísio Burity, do PMDB, almoçava em um restaurante, em João Pessoa, acompanhado por conhecidos. Por volta das 14 horas, ingressou no estabelecimento o então governador Ronaldo Cunha Lima, também do PMDB, e disparou dois tiros, atingindo o seu antecessor de surpresa, impossibilitando qualquer reação defensiva, deixando-o em coma por duas semanas, segundo a Procuradoria da República.

O Ministério Público federal apresentou denúncia contra Cunha Lima no Superior Tribunal de Justiça, instância competente para julgar os governadores pelos crimes comuns. O STJ pediu, então, autorização à Assembléia Legislativa da Paraíba para processá-lo, mas o pedido foi negado. Entendendo não restar outro caminho, o Tribunal determinou sobrestamento dos autos enquanto ele estivesse no exercício do cargo.

No ano de 1994, Cunha Lima renunciou ao cargo de governador para concorrer ao Senado. Os meses que permaneceu sem cargos, no entanto, não bastaram para que fosse julgado. Eleito e diplomado senador, o foro deslocou-se para o Supremo Tribunal Federal, e, em 1995, os autos lá chegaram. No mesmo ano, o STF solicitou licença ao Senado para julgá-lo, entretanto o Senado negou o pedido, com o disparatado argumento de que postulação semelhante havia sido negada pela assembléia paraibana. Mais uma vez os autos foram sobrestados. Porém, em face da Emenda Constitucional 35, de 2001, que permitiu ao Supremo julgar parlamentares sem necessidade da licença prévia, a ação tornou a tramitar no ano de 2002.

A tramitação processual no STF arrastou-se por mais de 5 anos e o julgamento do acusado foi designado, coincidência ou não, para o dia 5 de novembro de 2007, quando o crime completou 14 anos. Todavia, cabalisticamente, 5 dias antes do julgamento, Cunha Lima renunciou ao cargo de deputado federal que então exercia, obrigando, segundo o entendimento formal, o deslocamento de foro, agora para a Justiça Estadual de 1ª instância.

Como se a kafkiana legislação brasileira sobre a prerrogativa de foro não bastasse, questionado acerca da renúncia, Cunha Lima afirmou, desdenhando: “quero ser julgado por meus iguais, o povo”, enquanto o Ministro Relator, Joaquim Barbosa, agastado, considerou a fala “um escárnio para com a justiça brasileira e especialmente para com o Supremo Tribunal Federal”, esperando “que haja juízes corajosos e independentes na Paraíba para julgá-lo”.

Os discursos do réu e do Ministro, sendo diferentes, se complementaram e confirmaram uma tese. O primeiro defendeu, no fundo, que é possível burlar a lei valendo-se dela própria. O segundo, com manifesta revolta, mas sem contestação, aquiesceu, como se não houvesse possibilidades interpretativas ao seu dispor.

“Interpretar uma expressão do Direito não é outra coisa senão revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta”. Os valores, afirmava Reale, não se explicam segundo nexos de causalidade e isso conduz o juiz à missão de, na aplicação da norma, vencer os óbices criados por leis prenhes de individualismos. Se a renúncia foi uma burla, como reconheceu o próprio Ministro, a solução para o caso seria a prorrogação da competência do STF, com o julgamento do acusado na Suprema Corte, afinal, ninguém pode tirar proveito de sua própria torpeza.

O ministro mudou e sustentou a tese defendida por nós, a da prorrogação da competência, mas foi vencido e o Supremo Tribunal, que ainda tinha a chance julgar Cunha Lima determinou o encaminhamento dos autos para o Tribunal do Júri de João Pessoa. Não obstante o promotor tenha ratificado a denúncia e o juiz já tenha o pronunciado, dificilmente ele será condenado pelo crime. As im(p)unidades, a demora processual, robustecida com a infinidade de recursos previstos no nosso ordenamento e a idade de agora do réu, que reduz os prazos prescricionais, conspiram para que ele sequer seja julgado no pertinente ao mérito. A questão torna patente a incapacidade do STF para esses julgamentos e deixa nítida a necessidade de restrição ou mesmo de abolição do foro privilegiado, afinal, como quer Cunha Lima – mesmo que suas intenções não tenham sido nada nobres –, aqueles que julgam o povo devem julgar os governantes, seus iguais.

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