sexta-feira, 13 de novembro de 2009

EXPANSÃO PENAL VERSUS INTERVENÇÃO MÍNIMA

O artigo que segue é resumo de parte do que será tratado em nosso livro “Direito Penal Constitucional”, com publicação prevista para os próximos seis meses. Sintetizo, aqui, a questão confundida por setores da doutrina entre intervenção mínima e expansão penal. Em escrito já publicado pela Revista do Mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas, aliás, já tive oportunidade de fazer ver a devida compatibilidade entre o princípio constitucional penal da intervenção mínima e a tendência expansionista do Direito Penal contemporâneo. Essa discussão será aqui relançada com algumas propostas para reflexão.




É preciso distinguir a intervenção mínima, como meta de política criminal, do princípio constitucional da intervenção mínima, embora, por evidente, guardem estreita relação. Uma política criminal que se caracterize pela diminuição do Direito Penal nos parece sempre bem vinda por todos os problemas gerados pela aplicação das sanções penais, mormente pela pena privativa de liberdade. Entre nós, uma política criminal dessa natureza sempre foi encorajada por setores da doutrina, mas, na realidade, nunca encontrou eco nas ações do governo que, ao contrário disso, em todo tempo, encampou atuações panpenalistas.

A intervenção mínima como política criminal não se apóia no velho argumento iluminista, como faz ver Zaffaroni, e, sim, no fato de que, enquanto houver modelos ou formas de decisão de conflitos mais violentas, é necessária a permanência do Direito Penal como programação da operacionalidade do órgão judiciário. No momento em que o conflito se situar fora do poder verticalizador do sistema penal, submetendo-se a soluções menos violentas, ou mesmo liberado, quando não for preciso uma solução, é possível contrair o discurso jurídico-penal e diminuir a abrangência penal. (ver ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas – Deslegitimación e dogmática jurídico-penal, 2ª ed., Bogotá: Temis, 1993, p. 84).

Já o princípio constitucional da intervenção mínima, informado pela racionalidade dessa política criminal, no marco do Estado Democrático de Direito, substancializa o princípio da legalidade penal para, intra-dogmaticamente, impor ao legislador uma rígida predeterminação acerca do processo de qualificação do delito, somente autorizando-o a criminalizar condutas a partir das hipóteses de ofensas mais graves aos bens jurídicos com status constitucional (os mais importantes) e, ainda assim, quando outras respostas (v.g. civil, administrativa, mediação etc) não forem satisfatórias para a solução do conflito (subsidiariedade e adequação).

Os parâmetros de fabrico da criminalização ditados pelo princípio pretendem separar uma ampliação do Direito Penal sem contato com a realidade, irracional e, portanto, esquizofrênica, de uma expansão baseada nas necessidades criminalizadoras advindas das complexidades da sociedade atual, de novas realidades ou mesmo de situações antigas, mas, em face do contexto moderno, que reclama, racionalmente, a intervenção penal.

Nessa lógica, não há nenhuma antinomia entre o princípio da intervenção mínima e uma expansão do Direito Penal, o qual sempre é preferível ante a alternativas piores, como o surgimento da vindicta privada em alta escala (v.g. vingadores, grupos de extermínio, milícias, deliberações penais marginais etc), ou até pela possibilidade de mecanismos severos de controle e vigilância do comportamento humano por parte do Estado, como forma preventiva da conduta infracional.

Os freios impostos pelo princípio são, antes de qualquer coisa, pressupostos fundamentais para a construção do delito baseados na proporcionalidade entre a liberdade individual e a liberdade do alter ou, dizendo de outra maneira, entre a liberdade do indivíduo e a possibilidade de coexistência.

A própria Constituição, ainda como imposição de conteúdo, não olvida a necessidade de criminalização para preservação dos direitos essenciais à convivência, determinando, de certo modo, um alargamento do Direito Penal sem perder de vista as irradiações do princípio na diminuição de criminalizações.

Uma resposta para enfrentamento do problema da criminalidade que ameace os interesses, efetivamente, mais caros de uma sociedade, e não aqueles que ponham em xeque a autoridade estatal pode ser encontrada, sem máculas, nos princípios constitucionais penais. Propus, por isso, em tese de doutorado, uma divisão das infrações penais segundo as possibilidades de sanção. Sugeri que fosse designadas: a) infrações de baixa intensidade punitiva; b) infrações de média intensidade punitiva; c) infrações de intensidade punitiva moderada e d) infrações de alta intensidade punitiva.

As primeiras abrangeriam todas as infrações penais com previsão de penas de multa e prisão simples, assegurando-se que a prisão simples somente poderia vingar com a quebra da pena de multa ou restritiva de direito. Ante tal pressuposto, segue a possibilidade de flexibilização de algumas garantias, a previsão de procedimentos judiciais céleres e amplos mecanismos de transação. Nesta seara, se amoldariam todos os delitos praticados pelas pessoas jurídicas e todas as contravenções penais.

As segundas compreenderiam os crimes hoje chamados de infrações de menor potencial ofensivo, delitos com previsão de pena de prisão nunca superior a dois anos, bem assim, aqueles crimes cuja pena mínima não fosse superior a um ano e se amoldasse à possibilidade de Suspensão Condicional do Processo. A resposta continuaria a ser a prevista na Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95).

As infrações de intensidade punitiva moderada seriam todas aquelas não contidas entre as segundas e cuja pena máxima privativa de liberdade, prognosticada em abstrato, não ultrapassasse oito (08) anos. Para este grupo aplicar-se-ia as regras penais vigentes, inclusive no que tange às garantias e à execução da pena.

Por fim, as infrações de alta intensidade punitiva alcançariam todos os crimes com penas máximas superiores a oito (08) anos. Nelas, observando-se, estritamente, os princípios constitucionais penais, o legislador poderia flexibilizar algumas garantias processuais, por exemplo, ampliando as possibilidades de provas relativas ao sigilo fiscal, bancário e de comunicações – o que seria possível estender às infrações de intensidade moderada –, e permitir ao juiz, ao examinar cada caso concreto, cotejando-o com os princípios e os mandamentos constitucionais de criminalização, determinar a prisão provisória pelo dobro do prazo atualmente previsto; antecipar a execução a partir da sentença condenatória não transitada em julgado; impossibilitar a progressão senão quando cumprida dois terços da pena cominada; determinar, por prazos curtos, regimes prisionais diferenciados; estabelecer fiscalizações mais rígidas no que toca à liberdade condicional, além de outras medidas, de igual força, para responder, proporcionalmente, ao delito praticado, sem instituir o estigma de “inimigo” ao infrator, nem macular qualquer garantia constitucional.

As sociedades modernas carecem de respostas mais rápidas e efetivas. As mudanças de paradigma em face da complexidade dos novos fenômenos sociais, no entanto, não deve nos deixar tentados às soluções alienígenas, é preciso ir em busca das nossas próprias respostas sem quebrar o pacto racional que reconhece o ser humano e sua dignidade como fim do Estado.

No Brasil contamos com um Sistema de Justiça Criminal inoperante, e disso decorre o mesmo problema que nos persegue a tantos lustros, não cumprir as normas instituídas. Temos um sistema processual, não obstante algumas mudanças bem vindas, atrelado à década de quarenta e, ainda, extremamente cartorial marcado pelo abusivo número de recursos que, na prática, vem inviabilizando a realização do direito material. Pari passu às modificações na dogmática penal, necessárias e já em curso, consoante sinalizou a própria Constituição com os princípios constitucionais penais e os mandamentos de criminalização, não podemos esquecer as necessárias transformações no direito instrumental, mas este já é assunto para outro momento.

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