segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

UMA INTRODUÇÃO À PARTE ESPECIAL DO CÓDIGO PENAL



 

 

UMA INTRODUÇÃO À PARTE ESPECIAL DO CÓDIGO PENAL[1]


Sumário: 1. A Parte Especial do Código Penal.  2. A classificação dos crimes na Parte Especial. 3. Do Tipo: Conceito e dimensão constitucional.  4. Conceito e funções. 5. Estrutura. 5.1. Tipo de Injusto Doloso. 5.2. Tipo de Injusto Culposo. 6. Do Preterdolo. 7. O Conflito Aparente de Normais Penais: colocação do problema. 8. Pressupostos do Conflito. 9. Os Critérios para solução.  10. Critério da Especialidade. 11. Critério da Subsidiariedade. 12. Critério da Consunção. 13. Critério da alternatividade. 14. Hierarquia dos critérios.
 
1.             A Parte Especial do Código Penal
O Código Penal (CP) como se sabe possui duas partes, a Parte Geral (PG) e a Parte Especial (PE). A primeira estendendo-se do artigo 1º ao artigo 120 e a segunda do artigo 121 ao artigo 361. As partes são (podem ser) divididas em títulos, capítulos, sessões, artigos, parágrafos, itens (incisos) e alíneas. A Parte Geral foi completamente modificada em 1984, pela reforma introduzida com a Lei 7.209 de 11.7.1984 e sucessivas outras modificações. A Parte Especial, embora menos propensa a modificações, especialmente quanto aos delitos clássicos (v.g. homicídio, roubo) sofreu inúmeras mudanças, de modo que podemos afirmar que este não é um Código de 1940, todavia uma codificação bem mais nova.
A necessidade de uma codificação é questão controversa na doutrina. Para uns, nas sociedades complexas atuais, o melhor caminho seria os dos microssistemas, notadamente por conta das especificidades tão comuns no nosso tempo. Para outros, entretanto, a codificação, especialmente em matéria penal, fornece mais coesão dogmática e permite maior segurança aos súditos. No Brasil, não obstante os vários microssistemas (v.g. crimes ambientais, crimes de trânsito) optamos por reunir no Código Penal, para além das regras gerais aplicadas a todo e qualquer crime – embora respeitado o princípio da especialidade –, os crimes clássicos. Entrementes, tramita no Congresso Nacional o PL 236, do Senado Federal, que pretende reunir, napoleonicamente, no Novo Código Penal toda a legislação extravagante que, desde 1940, foi sendo editada no Brasil.
A Parte Especial do nosso Código compreende todas as normas incriminadoras existentes no CP. As normas incriminadoras como se sabe, são aquelas que definem o crime e estabelecem a respectiva sanção. Sua estrutura, assim, é bimembre, composta, sempre, de um preceito, ou preceito primário e a sanção, preceito secundário ou pena. Mas a PE não se esgota nas normas incriminadoras, há nela, também, normas penais não-incriminadoras que servem para interpretação, compreensão, sistematização ou aplicação de norma incriminadora específica ou de um conjunto delas encartado num capítulo, sessão ou título da Parte Especial. Se a Parte Geral é importante por estabelecer regulações para as normas incriminadoras, a Parte Especial é fundamental por impor um limite ao Direito Penal firmando quais são os comportamentos criminosos.
Bruno, com sua habitual proficiência, nos ensina que a Parte Especial é responsável por: i) fixar os principais valores que merecem proteção penal em dado momento histórico; ii) definir da maneira mais precisa possível a conduta passível de punição por ofensa àqueles valores; iii) estabelecer a quantidade e a qualidade da sanção penal; iv) classificar e ordenar os crimes[2].  

2.         A classificação dos crimes na Parte Especial
O sistema de classificação de crimes na PE segue o parâmetro da objetividade jurídica. Seguindo esse critério o Código leva em conta nos seus títulos e capítulos da PE o bem jurídico ofendido pelo crime. Embora controversa a questão acerca da ofensa a bem jurídicos juridicamente tutelados pelo Estado, essa nos parece a melhor opção para o disciplinamento dos vários tipos incriminadores no Código Penal. Diga-se que a mesma trilha é, também, seguida pela legislação extravagante e pela Lei das Contravenções Penais (contravenções referentes à pessoa, ao patrimônio, à incolumidade pública, à paz pública, à fé pública, à organização do trabalho, aos costumes, à Administração Pública)[3].
É evidente que uma disposição de crimes na PE segundo o bem jurídico atingido traz alguns problemas como, por exemplo, no caso de delitos que ofendem dois ou mais bens jurídicos, em que capítulo deveria ser elencado? Não há dúvidas de que, neste caso, deve-se ter em conta a preponderância do bem. Ainda assim, há entre nós, delitos como o latrocínio (roubo qualificado pelo resultado morte) que continua a figurar entre os crimes contra o patrimônio, quando, fosse levada em conta o critério da preponderância, deveria restar descrito entre as qualificadoras do homicídio (homicídio qualificado pela conexão teleológica ou consequencial).   
A Parte Especial, levando em conta, pois, a objetividade jurídica, classificou os crimes em i) crimes contra a pessoa (Título I); ii) crimes contra o patrimônio (Título II); iii) crimes contra a propriedade imaterial (Título III); iv) crimes contra a organização do trabalho (Titulo IV); v) crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos (Título V); vi) crimes contra a dignidade sexual (Título VI); vii) crimes contra a família (Título VII); viii) crimes contra a incolumidade pública (Título VIII); ix) crimes contra a paz pública (Título IX); x)  crimes contra a fé publica (Título X) e, finalmente,  xi) crimes contra a administração pública (Título XI).  
Heleno Cláudio Fragoso[4], em passagem clássica na literatura jurídica penal do Brasil, resumiu todo este conjunto de crimes na seguinte classificação: i) crimes contra bens e interesses da personalidade; ii) crimes contra bens e interesses do corpo social e, iii) crimes contra o Estado.
 O bem jurídico, portanto, que não é outra coisa senão tudo aquilo que os seres humanos, isolado ou coletivamente, podem dispor, usar, gozar, fruir e tem seu reconhecimento pelo direito positivo, fruto dos juízos de valor feitos pela humanidade na sua marcha histórica, é fundamental não só para classificação, mas para interpretação e aplicação das normas penais, inclusive em sua dimensão constitucional. Firmava Welzel[5] que a missão do Direito Penal não é outra senão “amparar os valores elementares da vida da comunidade”, porquanto não vivemos sozinhos, nós convivemos.
Vinculado ao conceito de bem jurídico está o conceito de tipo penal, chegando alguns a afirmar que o primeiro é a razão de ser do segundo. Para entender melhor a norma penal incriminadora e, portanto, a essência da Parte Especial é fundamental o estudo do tipo e, ainda, um olhar atento sobre o conflito aparente de normas. É o que faremos a seguir.  

3.         Do tipo: conceito e dimensão constitucional.
O tipo objetivo é a descrição jurídica abstrata, o texto que descreve a conduta, ou o enunciado sobre a norma imperativa elíptica que expressa os elementos do comportamento ditado por ela, é, em síntese, a descrição do comportamento proibido. Difere, pois, de tipicidade que “é a qualidade que se atribui a um comportamento, quando é subsumível a hipótese de fato de uma norma penal”[6]. O tipo pertence à lei enquanto a tipicidade pertence à conduta. Tipo é a fórmula legal que permite averiguar a tipicidade da conduta”[7].
            No Brasil, o tipo ganhou dimensão de garantia constitucional com o disposto no art. 5º, XXXIX: "não há crime sem lei anterior que o defina...", agasalhando a Carta de 1988, através da do princípio da legalidade, o corolário da taxatividade (= menor imprecisão possível na construção do texto do tipo de injusto).
           
4.          Conceito e funções.
Foi de fundamental importância para o Direito Penal a evolução do tipo. Ele  tornou-se uma garantia, assegurada a todos, de que a persecução penal, a cargo do Estado, só poderia vingar naqueles comportamentos definidos estritamente em lei criminalizadora. O tipo é, assim,  decisivo para verificação do ilícito penal. Só há ilícito penal se houver tipo descrevendo o comportamento proibido. 
Deve-se ao alemão Beling a noção de tipo como um dos elementos estruturais do conceito de infração penal. Inicialmente, foi o tipo percebido por ele como pura descrição objetiva.  Após, operou-se uma mudança do conceito, observando-se no tipo uma dupla ordem de valoração. A primeira compõe-se no juízo de desvalor social, originário da própria feitura deste. A segunda situa-se no peso valorativo encontrado, que permite ao tipo desempenhar função seletiva sobre as mais diversas formas de conduta humana, estabelecendo garantia aos cidadãos quando delimita o que é e o que não é permitido no Direito Penal.  Além da função selecionadora dos comportamentos humanos penalmente relevantes e da função de garantia, o tipo desempenha ainda uma função preventiva geral, porquanto, quando o legislador indica as pessoas quais as condutas proibidas, espera que, com a cominação das penas, elas abstenham-se de realizar tais condutas.
              Os alemães denominaram de tatbestand[8] o que em língua portuguesa traduz-se para tipicidade ou tipo. Já os italianos utilizam a expressão fattispecie, o que significa espécie de fato. A doutrina, majoritariamente, entende tipicidade como indício da ilicitude[9]. O tipo divide-se em tipo de injusto (do qual aqui trataremos) e tipo permissivo. 

5.  Estrutura
O tipo de injusto, aquele que descreve o comportamento, de regra, proibido, divide-se em:
a)      tipo de injusto doloso e
b)      tipo de injusto culposo.

5.1.   Tipo de injusto doloso
O tipo de injusto doloso divide-se em:
a)      tipo objetivo;
b)       tipo subjetivo.
O primeiro é composto de um núcleo (representado por um verbo – um fazer {ação}, ou um não fazer {omissão}) – e de elementos complementares de natureza descritiva e normativa.
  O tipo carece descrever com o máximo de clareza e o mínimo  e imprecisão possível o comportamento proibido, por força, como já visto, do imperativo do princípio da legalidade na sua função de taxatividade. O texto deve pautar-se em linguagem acessível ao nível cultural médio. Recomenda-se cautela na utilização dos chamados elementos normativos (v.g. “função pública”, “indevidamente”, “insolvência”, “credor”, etc), os quais implicam sempre uma valoração e, por isso, certo grau de subjetivismo,  preferindo-se os elementos descritivos (“lesões”, “danos”, “matar”, “coisa”, “alguém”, “filho”, etc), pois qualquer pessoa pode conhecer seu significado sem maiores problemas.
  O mesmo delito, por vezes, manifesta-se acrescido de uma particularidade que pode aumentar ou diminuir a pena básica.  Por exemplo, o furto quando praticado durante o repouso noturno (vide CP, art. 155, § 1º) é tido como (i) tipo qualificado em relação ao (ii) tipo básico (CP, art. 155) e quando o agente é primário e é de pequeno valor a res (CP, art. 155, § 2º) temos o chamado (iii) tipo privilegiado. Tanto o tipo qualificado como o privilegiado são derivações do tipo básico, aplicando-lhes a mesma regra. Todavia, por vezes, a particularidade é tão marcante que o legislador converte tipo básico em outro, considerado assim (iv) tipo autônomo em relação ao primeiro, é o caso do delito e furto de coisa comum (CP, art. 156) e do homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2º), por exemplo.
Os tipos qualificados ou privilegiados, por serem derivações, não modificam os elementos fundamentais do tipo básico. Já os tipos autônomos, constituem, “ao contrário, uma estrutura jurídica unitária, com um conteúdo e âmbito de aplicação próprios, com  medida penal autônoma[10].           
O  tipo subjetivo, diferentemente do objetivo, é de comprovação mais difícil, vez que repousa na psique do agente. O tipo subjetivo no delito doloso, como evidente, é o dolo, o qual, modernamente, é levado em conta a partir da conduta (teoria da ação finalista).
Dolo é a vontade (animus) incondicionada de realizar o tipo objetivo de um delito. Comporta, assim, os seguintes elementos:
a)      O elemento intelectivo ou cognitivo – é o conhecimento pelo agente dos elementos que caracterizam sua ação como típica. Este conhecimento há de ser atual e, claro, profano;
b)      O elemento volitivo – é a vontade do agente em querer realizar a ação típica.
c)      A conduta comissiva ou omissiva.
O dolo não se confunde com desejo. No dolo o agente põe em curso uma conduta potencial (mais ou menos dominável, capaz) para realização do tipo, enquanto no desejo o curso dos acontecimentos não é passível de controle pelo agente.
São espécies de dolo:
a)      Dolo direto – aquele em que o agente quer realizar precisamente (diretamente) o resultado proibido no tipo penal (delitos de resultado naturalístico) ou a ação típica (delitos formais). (Teoria da vontade);
b)      Dolo eventual - nos passos da teoria do consentimento, é a vontade que, embora não dirigida diretamente a realização do tipo objetivo de um crime, previsto como provável, consente no advento deste, vale dizer, assume o risco de produzi-lo.

Costuma-se classificar o dolo em:



{ Direto - Art. 18, I
  Dolo:
              { Indireto: [ eventual    -   Art. 18, I, última parte.
                                 [ alternativo -  Quando o objetivo da conduta se divide em
dois ou mais resultados, indiferentes ao sujeito      ativo. Ex: matar ou lesionar. No dolo eventual o agente fica entre realizar ou não realizar um fato típico.          

As seguintes classificações, embora procedidas por diversos autores, não encontram mais significação em face da teoria da ação finalista. São elas:
Dolo de Dano – Quando o agente quer ou assume o risco de produzir efetivamente o dano (prejuízo material ou imaterial).
Dolo de Perigo – Quando a conduta orienta-se tão só para a criação de um perigo (risco de dano), perigo este que constitui o resultado previsto na lei. Ex.: CP, art. 130 (crime de perigo de contágio venéreo).
  Dolo Genérico – Quando o agente deseja apenas o fato descrito na norma penal em seu  núcleo. Ex.: Lesionar alguém, CP, art. 129, caput.
  Dolo Específico – Quando o agente quer realizar o fato com uma finalidade especial. Ex.: CP, art. 249 e art. 220.
  Afirme-se que a pena, em abstrato, é a mesma para qualquer espécie de dolo.
  Sobre o conteúdo do Dolo é possível listar três teorias:
a)                          Teoria Psicológica: para a existência do dolo basta que o autor represente e deseje o evento punido pela Lei.
b)                          Teoria Normativa: além da vontade ou do consentimento, comporta o dolo a consciência da ilicitude, ou seja, consciência de que se age contrariamente ao direito.
c)                          Teoria Normativa Pura (adotada pelos finalistas e entre nós): comporta o dolo somente a vontade ou o consentimento quanto ao resultado, a consciência da ilicitude é analisada separadamente quando da decomposição da "culpabilidade".
                         
É preciso não esquecer que para a concepção causal, hoje superada, o dolo e também a culpa pertenciam a culpabilidade. A  consciência potencial da ilicitude era parte integrante do dolo.
Para a concepção finalista o dolo pertence ao tipo e a consciência da ilicitude (destacada do dolo) é elemento da culpabilidade, entendida como juízo de reprovação (censura) da conduta e último elemento do conceito analítico de crime.  Tal concepção é largamente aceita entre nós.     

5.2.  Tipo de injusto culposo
  O tipo de injusto do delito culposo é aberto, não existe, pois, tipo objetivo do delito culposo, assentando-se este tão somente na ausência do dever objetivo de cuidado que todo devemos ter, bem por isso são incalculáveis o número de comportamentos que possam resultar na quebra deste dever, assim seria impossível ao legislador quantificar, descrevendo-as objetivamente, as condutas culposas. Desta forma existe tão somente no tipo de injusto do delito culposo o tipo subjetivo.
 A culpa é exceção no Direito Penal. Em regra todos os crimes são dolosos, somente admite-se o crime culposo se houver previsão expressa. É que a realização culposa dos elementos objetivos dos delitos não deve ser punida sempre. O princípio da intervenção mínima impõe aqui uma dupla restrição, de um lado obrigando a seleção de determinados comportamentos culposos que afetem bens jurídicos fundamentais (vida, integridade física e psíquica, etc), de outro, punindo apenas os comportamentos que chegam efetivamente a produzir um resultado lesivo àqueles determinados bens jurídicos[11].
São elementos da culpa:
i) Quebra do dever objetivo de cuidado (por negligência, imprudência ou imperícia) através de uma conduta voluntária; ii) Resultado prognosticado em Lei (previsto {culpa consciente} ou não previsto {culpa inconsciente} pelo agente); iii) nexo causal entre a conduta e o resultado; iv) ausência de intenção ou/e aceitação do resultado.

Da conduta voluntária decorrem as seguintes modalidades da culpa:
a) A negligência, que significa desleixo, incúria, desatenção e pode ser conceituada como a falta de precaução ou descuido em relação ao comportamento que deveria ser realizado.  O agente não faz o que deveria (com cautela normal) fazer, por exemplo, não troca os pneus gastos do veículo, acontecendo a má frenagem com o atropelamento e morte de um pedestre.  A negligência é caracterizada por uma conduta negativa.
b) A imprudência, caracterizada pela prática de uma conduta positiva. Aqui o agente faz quando não deveria fazer. Aumenta, por exemplo, a velocidade do veículo em vias incompatíveis com o excesso de velocidade, atropelando e ferindo um transeunte.
c) A imperícia, que se diferenciando das modalidades anteriores, é a ausência de aptidão para o exercício profissional, ou como bem definiu Hungria, “é a inobservância, por despreparo prático ou insuficiência de conhecimentos técnicos, das cautelas específicas no exercício de uma arte, ofício ou profissão"[12]. Imperito é o cirurgião que durante a cirurgia corta um vaso sangüíneo de grosso calibre no paciente por inaptidão, quando no caso, deveria estar capacitado para fazer o que estava fazendo.
Pouco importa, em verdade, qual modalidade da culpa, basta que fique provada a quebra de um dever objetivo de cuidado e os demais requisitos. Na Espanha, por exemplo, não se reporta mais a essas modalidades, chama-se negligência qualquer delas.  

6. Do Preterdolo
O delito diz-se ainda preterdoloso ou preterintencional quando, necessariamente, a conduta inicial do agente é praticada a título de dolo, sobrevindo em decorrência dela, resultado mais grave daquele pretendido por ele, imputado este resultado a título de culpa. Assim é correto afirmar que o preterdolo é um misto de dolo e culpa, dolo pela conduta inicial e culpa pelo resultado, não pretendido, que agrava especialmente a pena.  O agente pretendia menos e ocorreu um plus, que lhe é imputado a título de culpa stricto sensu. São exemplos de delitos preterdolosos a lesão corporal seguida de morte (CP, art. 129, § 3º) e o abortamento qualificado (CP, art. 127).             

7.         O conflito aparente de norma penais: colocação do problema
A questão do chamado Conflito Aparente de Normas não é outra senão a do estabelecimento de critérios para a correta aplicação das normas penais ou, por outras palavras, de se saber, dogmaticamente, que norma aplicar a espécie.
O Ordenamento Jurídico constitui-se em um sistema e, como tal, pressupõe-se harmônico, coerente, não existindo conflito (antinomia) entre suas partes. A palavra sistema já implica em harmonia, em certa ordem[13].  O Ordenamento é um sistema aberto composto de princípios e regras que denominamos de Normas Jurídicas. 
De imediato podemos dizer que a doutrina positivista formulou, para o Direito em geral, três critérios para a solução de conflitos no sistema: O critério cronológico (lex posterior derogat priori), o critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) e o critério da especialidade (lex specialis derogat generali)[14].
No Direito Penal especificamente, já sabemos, há Normas Princípios e Normas Regras. As Normas Penais Principiológicas são sempre Normas Não-Incriminadoras, enquanto as Normas Penais Regras podem dividir-se em Normas Penais Não-Incriminadoras e Normas Penais Incriminadoras. Todas estas normas são também harmônicas entre si. É possível, no entanto, em certos casos, parecer haver para determinado fato, a incidência de duas ou mais normas penais, quando, na verdade, somente uma delas é aplicável. Quando isso ocorre, vamos nos valer, no Direito Penal, dos mesmos critérios acima abordados, além de outros que repercutirão, especialmente, nas Normas Incriminadoras.
 A nomenclatura empregada para o tema proposto consiste na locução “conflito aparente”, em razão da oposição que se faz com o chamado “conflito real”, expressão que, para alguns, é sinônima de antinomia. O conflito diz-se aparente porque só seria real (antinomia) se a ordem jurídica não estabelecesse critérios para sua resolução. Este tema, portanto, relaciona-se com os critérios dogmáticos previstos pelo próprio ordenamento e com sua utilização, repercutindo nas lições dos penalistas brasileiros, quase que somente, em relação às normas penais incriminadoras. 


8.                  Pressupostos do conflito
Os autores nacionais e estrangeiros concordam que só ocorre o conflito aparente de normas, salvo raras exceções, quando os seguintes pressupostos estão patenteados:
                                  i.                  unidade de fato e

                                  ii.                pluralidade, aparente, de normas incriminadoras em vigor,  identificando o mesmo fato como delituoso.

9.             Os Critérios para solução
Considerando os pressupostos acima estabelecidos, máxime tendo em conta que as normas “aparentemente em conflito” estão em vigor, ou seja que não foram revogadas por norma posterior, tampouco conflitam com normas superiores, sobretudo normas constitucionais, podemos destacar quatro critérios para o remate do problema, são eles: i) Especialidade; ii) Subsidiariedade; iii) Consunção e iv) Alternatividade.


10.         Critério da especialidade
É especial uma norma penal em relação à outra (chamada geral), quando ela reúne todos os elementos desta última, acrescido de mais algum, chamado especializante (art. 12 do Código Penal). Nas normas incriminadoras toda ação que realiza o tipo objetivo (= preceito, preceito primário, texto) do delito especial realiza necessariamente, ao mesmo tempo, o tipo do geral, enquanto o contrário não é verdadeiro.
Tome-se, como exemplo, o artigo 121, caput, do Código Penal e o artigo 123 do mesmo diploma, o texto do primeiro – norma geral – estabelece: “matar alguém”;  o do segundo – norma especial  – dispõe: “matar, sob a influência do estado puerperal,  o próprio filho, durante o parto ou logo após”.   É fácil perceber, considerando que a morte do infante ocorra após seu nascimento com vida, que a norma do 123, engloba todos os elementos da norma do 121, acrescentando outros ditos   especializantes (“estado puerperal”, “o próprio filho”, “durante o parto ou logo após”). Se tais elementos se fazem presentes, o agente responde, tão só, pelo crime de infanticídio.

11.         Critério da subsidiariedade
A subsidiariedade ocorre quando uma norma incriminadora que define crime de menor gravidade está abrangida pela norma incriminadora que define delito de maior gravidade, nas circunstâncias concretas que o fato ocorreu[15]. Neste caso a norma subsidiária é afastada pela aplicabilidade da norma principal que tem sempre pena mais grave. A rigor, a figura típica subsidiária está contida na principal.
A subsidiariedade pode ser:
a) Tácita – quando os elementos do tipo objetivos de determinada norma incriminadora funcionam também como elemento do tipo de outra norma incriminadora, de maior gravidade punitiva, de forma que esta última exclui a aplicação simultânea da primeira. Note-se que no furto qualificado pela destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa (CP, art. 155, § 4º, I), o agente, além de subtrair a coisa alheia móvel, destrói ou danifica obstáculo à subtração realizando, também, o tipo previsto no artigo 163. No entanto, com esse último é subsidiário vez que está contido no primeiro - qualificado por isso - não incide no caso, aplicando-se tão só o delito de furto.
Figure-se a seguinte hipótese: João, chefe do tráfico em um morro da capital carioca determina a Marcelo, Paulo, Fabrício e Antônio, moradores da favela local toque de recolher, dizendo que, não sendo obedecido, matará a todos eles. João realiza, assim, o tipo descrito no artigo 147 do Código Penal (ameaça), mas o faz para constranger tais pessoas a permanecerem em casa por determinada hora, João, desta maneira, realiza, também, o tipo previsto no artigo 146 (constrangimento ilegal). Ambos os tipos incidirão? A resposta é negativa. Prevalece o delito principal, pois nele já está contido o subsidiário, tanto que a pena é mais grave. O mesmo ocorre, ainda, por exemplo, com a omissão de socorro (CP, art. 135) e o homicídio culposo (CP, art. 121, § 5º, segunda figura).   
b) Expressa – quando a norma textualmente subordina a sua aplicação a não-aplicabilidade de uma outra norma mais severa[16]. Consultando o artigo 132 (perigo para a vida ou a saúde de outrem), não é difícil perceber que sua incidência é condicionada a não existência do delito mais grave, a tentativa de homicídio (CP, art. 121, c/c 14, II). A lesão corporal seguida de morte (CP, art. 129, § 3º) condiciona sua subsunção à evidência de não existir prova da vontade de produzir o resultado morte, havendo prova de uma tal vontade, incide o tipo de homicídio doloso (CP, art.121). As contravenções de vias de fato (LCP, art. 21) somente têm aplicação se não ocorrer à lesão corporal simples (CP, art. 129).
Note-se que, embora exista uma zona cinzenta, há diferença com o critério da especialidade. Neste a relação é de gênero e espécie, na subsidiariedade, ao contrário, os fatos previstos em uma norma e na outra “não estão em relação de espécie a gênero, e se a pena do tipo principal (sempre mais grave que a do tipo subsidiário) é excluída por qualquer causa, a pena do tipo subsidiário pode apresentar-se como ‘soldado de reserva’ e aplicar-se pelo residuum[17].

12.         Critério da Consunção
 Ocorre a consunção, também chamada de absorção, quando o comportamento definido por uma norma incriminadora é meio necessário ou etapa de preparação ou execução de outro crime. 
Por vezes, dá-se também a relação consuntiva quando, no mesmo contexto fático, o comportamento definido por uma norma incriminadora constitui conduta anterior (ante factum) ou posterior (post factum) do agente, cometida em conexão teleológica ou consequencial atinente a outro crime.
Na relação de consunção os fatos se apresentam  de parte a todo, de meio a fim, de fração a inteiro. Nestes casos a norma incriminadora minorem é  excluída. São exemplos: minus a plus (crimes progressivos); meio a fim (crimes complexos), embora para alguns, prevaleça, neste último caso, o critério da especialidade; parte a todo (tentativa e consumação).
Aplica-se o critério da consunção ao crime progressivo e a progressão criminosa. Crime progressivo é aquele em que o agente para alcançar a produção de um resultado de maior gravidade, passa por outro resultado de menor gravidade (v.g. homicídio [CP, art. 121] e lesão corporal [CP, art. 129], sendo o último crime absorvido [consumido] pelo primeiro, o qual prevalece. Os crimes de dano absorvem os de perigo.
O crime progressivo difere, para certos setores da doutrina[18], da progressão criminosa, a qual somente ocorre quando há pluralidade de desígnios ou propósitos.  Na progressão criminosa o agente pretende, de início, realizar, tão só, um determinado tipo. No entanto, logo após, com um novo desígnio, aproveitando-se imediatamente da realização do crime já cometido, desenvolve nova atividade realizando um segundo delito. Um exemplo explicita o conceito: Pedro, querendo aplicar uma surra em José, após desferir contra ele socos e pontapés percebe que ao cair ao solo José desfaleceu. Com isso, pensa então, só agora, em matar seu desafeto. Toma de uma faca que carregava e desfere contra José vários golpes, matando-o.
Advirta-se que a matéria atinente à progressão criminosa, além de controvertida, é marcada pela insegurança da doutrina que defende a sua possibilidade. 
            O critério da consunção (e para alguns estudiosos o da subsidiariedade tácita, em relação ao ante factum) abrange condutas anteriores ou posteriores ao crime que são consideradas impuníveis, trata-se do pós-fato (post factum) e do antefato (ante factum) impuníveis, estudados por Honig e extremamente controvertidos. Para exemplificar, não se pune o dano (CP, art. 163), depois de furtada (CP, art. 155) a coisa alheia móvel, como tampouco há punição por estelionato (CP, art. 171) se o ladrão põe a venda  a coisa furtada (CP, art. 155) para terceiro de boa fé. Respeitante ao antefato, não se pune o agente pela contravenção de instrumentos empregados usualmente na prática do furto (LCP, art. 25) em relação ao próprio furto (CP, art. 155).  A violação de domicílio (CP, art. 150) é consumida pelo furto (CP, art. 155) que se pratica na residência. O crime de porte de armas (ED [Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003] art. 14) é consumido pelo de homicídio (CP, art. 121)? A melhor doutrina entende que se os delitos ocorrem dentro de um mesmo contexto fático, ou seja, se o agente apossou-se da arma exclusivamente com o propósito de matar aquela determinada pessoa, ocorre o antefato impunível, todavia se a posse da arma era ocasional, fora do contexto fático, não existe consunção[19].
Sempre é necessário verificar o nexo de dependência entre os dois crimes para averiguar a existência de consunção ou de concurso material (quando os dois crimes incidem). Nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça já fez ver que:

O princípio da consunção pressupõe a existência de um nexo de dependência das condutas ilícitas, para que se verifique a possibilidade de absorção daquela menos grave pela mais danosa. Incabível a aplicação automática do princípio da consunção, em desconsideração às circunstâncias fáticas do caso concreto, em que as infrações ocorreram em momentos distintos. Quando constatado que os crimes de porte ilegal de armas e de homicídio qualificado se afiguram absolutamente autônomos, inexistindo qualquer relação de subordinação entre as condutas, resta inviabilizada a aplicação do princípio da consunção, devendo o réu responder por ambas as condutas. (STJ, HC 51660/DF, Quinta Turma, Rel. M. Gilson Dipp; DJ 10.04.2006, p. 260).

13.    Critério da Alternatividade
Muitos doutrinadores sequer mencionam a alternatividade como critério para o conflito entre regras, até porque, este parâmetro destina-se a solucionar um problema atinente aos denominados crimes de ação múltipla ou delitos de conteúdo variado, os quais são resolvidos, segundo Hungria, pelo critério da consunção[20]. Estes delitos são compostos de vários núcleos (= verbos que indicam qual a ação ou omissão cometida) e a realização de todos implica na incidência única da regra e não em uma múltipla incidência. Assim, diz-se que há alternatividade quando o agente ainda que realizando mais de um núcleo não responde mais de uma vez pelo delito (v.g. no crime de induzimento, instigação e auxílio ao suicídio (CP, art. 122) se o agente induz (faz nascer à ideia de suicídio) a vítima ao suicídio, logo depois a instiga (incentiva) e ainda lhe empresta uma arma (auxilia), vai responder pelo crime uma única vez. Note-se, por importante, que as ações devem ocorrer no mesmo contexto fático. Com a reforma produzida pela Lei 12.015/2009, diga-se por importante, quem, no mesmo contexto fático, constrange uma pessoa a conjunção carnal e, logo em seguida. pratica contra ela outro ato libidinoso diferente da conjunção carnal, pratica apenas um crime, o crime de estupro (CP, art. 213).

14.         Hierarquia dos critérios
            Por derradeiro, é preciso esclarecer que dentre os critérios mencionados, o cronológico, hierárquico e da especialidade são bem mais laborados e expostos com precisão pela doutrina. Os demais devem ser usados supletivamente, tão só quando os primeiros não resolverem satisfatoriamente o problema. Por fim, o estudo (acima) do tipo objetivo, possibilitará capacitação suficiente para percepção da norma penal incriminadora aplicável a espécie. 

 




[1] * Texto, sem revisão, que não substitui a bibliografia recomendada.

[2] BRUNO, Aníbal. Crimes Contra a Pessoa. Rio de Janeiro: Rio, 1975, p. 24.
[3] Vide Dec-Lei 3.688 de 03 de outubro de 1941.
[4] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal – Parte Especial. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 14.
[5] WELZEL, Hans. Derecho Penal – Parte Generale. Trad. Fontán Balestra. Buenos Aires: Depalma, 1956, p. 1.

[6] MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Trad. Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 42.
[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl & PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, São Paulo: RT, 1997, p. 446 e 447.
[8]O vocábulo é largamente utilizado por PONTES DE MIRANDA (Tratado de Direito Privado, I, § 1º, 4) que o verteu em vernáculo por suporte fáctico.
[9]Teoria indiciária (ratio cognoscendi) de MAX ERNST MAYER.  Há seguidores de EDMUND MEZGER, no entanto, que defendem que a tipicidade e a ilicitude formam um todo unitário, o tipo, então, identificar-se-ia com a ilicitude (ratio essendi), vide, sob este aspecto, a teoria dos elementos negativos do tipo e a teoria da tipicidade conglobante (ZAFFARONI).
[10] MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Teoria Geral do Delito. Trad. Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 48.
[11] MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Teoria Geral do Delito. Trad. Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 70 e 71.
[12] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 163.
[13] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, trad. M. Celeste dos Santos. Brasília: UNB, 1996, p. 71.
[14] BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico - Lições de Filosofia do Direito, trad. Márcio Pugliesi, E. Bini e Carlos Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 204-210.
[15] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 358. 
[16] BITENCOURT, Cezar Roberto. Lições de Direito Penal – Parte Geral, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 63.
[17] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 147.
[18] STEVENSON, Oscar. Concurso Aparente de Normas Penais, in: Estudos em Homenagem a Nelson Hungria, Rio de Janeiro: Forense, 1962, p. 41.
[19] STEVENSON, Oscar. Concurso Aparente de Normas Penais, in: Estudos em Homenagem a Nelson Hungria, Rio de Janeiro: Forense, 1962, p. 42. 
[20] HUNGRIA, Nelson, Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 148.