terça-feira, 3 de agosto de 2010

O CASO DO GOLEIRO DO FLAMENGO: É PRECISO UM CORPO?

Para que se possa iniciar um processo criminal é indispensável, como sabemos, que existam indícios suficientes de autoria e prova da materialidade. Sobre o provável homicídio envolvendo o goleiro time de futebol mais popular do Brasil, não podemos, em primeiro lugar, perder de vista a presunção de inocência. Mas, como é uma presunção o princípio da inocência não obstaculiza a persecução criminal, assegura, todavia, a obrigatoriedade da acusação produzir a prova, como garante o exercício da ampla defesa, a qual poderá demonstrar a inocência de Bruno, agora suspeito da morte de Eliza Samudio.

A desconfiança em relação ao jogador do Flamengo parece-me razoável, pois já há indicativos de sua participação no suposto delito, segundo todos os informes que a mídia nacional encarregou-se de divulgar. Indicativos ou, mais precisamente, indícios são, parafraseando Mittermaier, fatos em relação tão precisa com outros fatos, que dos primeiros é possível chegar aos segundos por conclusão lógica. Aplicando esta assertiva podemos examinar a questão com um exemplo: (i) fatos provados: 1º) um vídeo em que Eliza declara, com detalhes, agressões, tentativa de aborto e ameaças de morte feita por Bruno; 2º) o desaparecimento de Eliza; 3º) depoimentos que firmam que a moça foi morta; 4º) contradições na fala de Bruno; 5º) relações de Bruno e seus amigos com criminosos, como um ex-policial implicado com execuções homicidas. (ii) Destes fatos é possível inferir: 1º) Bruno pode ter mandado matar Eliza, ou 2º) Bruno pode ter participado da morte de Eliza.

Os indícios, desde que robustecidos na instrução criminal, chamados, então, de indícios de “primeira classe”, servem não só como base para um juízo de verossimilhança – aquele necessário para medidas cautelares, como a prisão processual – como, também, se prestam, quando unívocos, para fornecer suporte a uma condenação.

Vencida a questão dos indícios de autoria, os quais, no momento, já sustentam a possibilidade do recebimento da denúncia, indaga-se se é preciso um corpo para que haja processo e até mesmo condenação? A resposta é negativa. Imaginem, principalmente no Brasil e em Alagoas, o instrumento que forneceríamos aos facínoras se o processo penal ou a sentença condenatória fossem apenas admitidos com a localização do corpo da vítima. E as vítimas incineradas, atomizadas, esquartejadas, concretadas, deglutidas por animais, em uma palavra: destruídas? A doutrina e a jurisprudência correntes admitem, na esteira do que prescreve, ainda que timidamente, o Código de Processo Penal (art. 167), o chamado Exame de Corpo de Delito Indireto mesmo para o caso de homicídio, latrocínio e extorsão mediante sequestro seguida de morte. Os Exames de Corpo de Delito Indiretos são aqueles empregados quando os vestígios de um crime (crimes materiais) desaparecem. Empreende-se a prova da materialidade, assim, por outros meios: confissão do agente, depoimentos testemunhais, circunstâncias que rodeiam o fato, opinião de peritos, fotografias, laudos diversos, presença de cabelos, exames de DNA etc. O Corpo de Delito Indireto, como fica fácil de perceber, não é outra coisa senão a substituição de um meio de prova, impossível de ser realizado, por outro que supre o primeiro.

Em sede de Recurso Especial, no controle, pois, da jurisprudência de todos os Tribunais inferiores do Brasil, decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO. AUSÊNCIA DE REALIZAÇÃO DO EXAME DE CORPO DE DELITO. SUPRIMENTO. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS A PARTIR DAS DEMAIS PROVAS EXISTENTES NOS AUTOS. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO.
O exame de corpo de delito não é imprescindível, tanto é assim, que a própria lei adjetiva orienta como proceder em sua falta, embora, em verdade, deva-se envidar todos os esforços possíveis para sua realização. No caso em análise, não houve desídia por parte da autoridade policial, observando-se que sempre se laborou no sentido da localização do corpo da vítima, além de outras perícias.Desde o início empreendeu-se diligência com o fim de localizar o corpo de Alba, seja na região de Campinas, nos meses de fevereiro e maio de 1987, fls.58 e 83, seja no Estado de Mato Grosso do Sul, nos meses de agosto de 1987 e junho de 1988, consoante os extensos e detalhados relatórios de fls. 187/195 e 392/410. Em que pese todos os esforços, nunca se localizou o corpo de Alba. Entretanto a não-localização do corpo da vítima ou da arma e conseqüente realização do exame pericial respectivo não acarreta na impossibilidade da "persecutio criminis", posto que sua falta, conforme já frisado, é suprida pela prova testemunhal e indiciária. (STJ – Resp. n. 618.037-SP – Rel. Min. Arnaldo Esteve Lima – DJU 10.03.2006, veja aqui).

Ainda é cedo para firmar convicções. Um processo bem conduzido, lastreado na oxigenação do contraditório poderá fornecer elementos (provas diretas ou indiciárias) que levem a um veredicto seguro, lembrando sempre que só podemos nos valer da certeza – um estado de espírito que afasta os humanos da possibilidade de dúvidas –, nunca da verdade – pertencente aos deuses e incompatível com a condição humana. Se o jogador for processado e absolvido não faltarão os bordões populares clamando por “justiça”; se processado e condenado aparecerão os críticos das falhas judiciais recordando, mais uma vez, o caso dos irmãos Naves sem saber que esta é outra história.

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