quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O DIREITO DE MORRER (!?)

“O homem já estava deitado dentro da noite sem cor

Ia adormecendo, e nisto à porta um golpe soou.

Não era pancada forte. Contudo, ele se assustou,

Pois nela uma qualquer coisa de pressago adivinhou.

Levantou-se e junto à porta / - Quem bate? Ele perguntou.

- Sou eu, alguém lhe responde. / - Eu quem? Torna. – A Morte sou.

Um vulto que bem sabia pela mente lhe passou:

Esqueleto armado de foice que a mãe lhe um dia levou.

Guardou-se de abrir a porta, antes ao leito voltou,

E nele os membros gelados cobriu, hirto de pavor.

Mas a porta, manso, manso, se foi abrindo e deixou

Ver – uma mulher ou anjo? Figura toda banhada de suave luz interior.

A luz de quem nesta vida tudo viu, tudo perdoou.

Olhar inefável como de quem ao peito o criou.

Sorriso igual ao da amada que amara com mais amor.

- Tu és a Morte? Pergunta. E o Anjo torna: - A Morte sou!

Venho trazer-te descanso do viver que te humilhou.

Imaginava-te feia, pensava em ti com terror...

És mesmo a Morte? Ele insiste. - Sim, torna o Anjo, a Morte sou,

Mestra que jamais engana, a tua amiga melhor.

E o Anjo foi-se aproximando, a fronte do homem tocou,

Com infinita doçura as magras mãos lhe cerrou...

Era o carinho inefável de quem ao peito o criou.

Era a doçura da amada que amara com mais amor.” (Manuel Bandeira)

O que é a morte? Será que é possível a alguém falar em experiência de morte, com todas aquelas sensações experimentadas pelo moribundo, ou isso não passa, como afirmava SANTO AGOSTINHO, de experiência de vida, já que quando a morte sobrevém, o ser humano já se acha em um estado posterior, de modo que não se pode dizer quando alguém está na morte? Independente da resposta a esta questão, considera-se uma conquista atual da bioética, com aceitação generalizada no mundo científico, o conceito de morte como a perda, em caráter permanente, das funções cerebrais, ainda que pulse e respire o corpo humano. Aliás, é isso que permite o transplante de órgãos e tecidos de conformidade com o estabelecido em nossa legislação, além, de embasar, junto a outros fatores, a legalidade do aborto em caso de fetos anencefálicos.

A questão deste ensaio, no entanto, diz respeito não à morte, mas à existência do direito de morrer. Pode uma pessoa dispor de sua própria vida? Em que condição é possível matar um ser humano em atroz sofrimento? Alguns negam, peremptoriamente, qualquer direito a morte em homenagem a sacralidade da vida humana. Escreveu SÃO TOMAS DE AQUINO que só Deus decide em que momento devemos morrer. Por mais absurdo que pareça, algumas nações, de tão apegadas a essa idéia, já puniram a tentativa de suicídio com a pena de morte e muitos cristãos que conhecemos são favoráveis a pena capital para certos crimes. Todavia, separados das concepções religiosas e assistidos pelo avanço do conhecimento e das técnicas científicas, vivemos em um tempo de deferência ao espaço exclusivamente individual e de possibilidades, com grande margem de segurança, de avaliar a intensidade da dor, a gradação do sofrimento, a qualidade e chances de vida de um enfermo.

Hoje já não se pode admitir que o Estado imponha a moral de um grupamento sobre outros, menos ainda que interfira, paternalisticamente, no espaço reservado ao próprio indivíduo. O poder público só pode interferir contra a nossa vontade, já afirmava no século XIX STUART MILL, quando para impedir que causemos prejuízos aos demais. Um ser humano racional e com capacidade de tomar decisões e agir de conformidade com elas (autoconsciência) tem o direito de deliberar sobre a continuação ou não de sua própria vida e não é possível qualquer condenação se ele resolve pelo suicídio (v.g. interferência na herança etc.), a não ser que haja dano ao alter (v.g. fraude aos seguros etc.).

Também, sem embargos das leis punitivas, já não há espaços, para condenações estatais pela morte dada a um paciente terminal em estado de sofrimento insuportável, desde que a intervenção ativa (eutanásia) ou passiva (ortotanásia) seja praticada por um médico, com a concordância de outro sobre o quadro irreversível, solicitado por pedido explícito do paciente, paciente dotado de compreensão de sua condição e de outras possibilidades existentes e que não haja, segundo seu sentir, meio diverso capaz de aliviar sua intensa e permanente dor. Observados tais pressupostos, o exemplo do chamado suicídio assistido vem da Holanda, onde é apoiado não só pela comunidade médica daquele país (Real Associação Médica) como pelo povo holandês.

A autonomia da vontade embasada na racionalidade da decisão pessoal e da não afetação a direitos alheios é um forte argumento em favor do respeito e da não interferência do Estado por opções como a eutanásia. No futuro, alguns dirão, o avanço das terapias fará com que a questão perca a relevância, a medicina alcançará grandes conquistas de cura e, por certo, proporcionará muito mais conforto aos pacientes terminais incuráveis. É provável que isso ocorra, no momento, porém, o que temos são realidades distintas de tratamento entre regiões, países, distritos e o pior, entre classes sociais. Na atualidade, em certos quadros clínicos, nenhum médico ou hospital pode aliviar o lancinante sofrimento de uma pessoa, nesses casos aqui ou alhures, hoje ou amanhã, deve-se acatar a decisão do indivíduo, o único, quando autoconsciente, em condições de aquilatar se seu sofrimento é ou não suportável.


Um comentário:

Renata Torres disse...
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