quinta-feira, 15 de outubro de 2009

DIREITOS DA NATUREZA OU DIREITOS DOS HOMENS À NATUREZA? ANTROPOCENTRISMO E DIREITO AMBIENTAL

O pensamento cristão de que só os seres humanos carregam consigo uma alma fundiu-se na cultura ocidental com a física cartesiana, a qual pretendeu demonstrar que o universo não seria um “grande vivente” como pensavam os antigos, que a natureza seria inanimada e o mundo material não teria espírito, sequer vida e até mesmo força, reduzido, por completo, às dimensões da extensão e do movimento. Ao ser humano caberia, daí por diante, todos os direitos e nenhum à natureza e aos animais, ainda que criados por Deus. Ambas as concepções, embora diferenciadas, acabaram por produzir a definição do homem como o único protagonista do cosmos, situando-o acima da natureza que goza apenas de um valor instrumental.

Mas serão os direitos única e exclusivamente do ser humano? Será possível afirmar a superioridade do homem em relação ao “resto” do universo? Por mais paradoxais que sejam – o cristianismo, com a crença da exclusividade da alma, e a física cartesiana, centrada na fé suprema na razão – levaram o ocidente a acreditar em uma resposta definitivamente afirmativa para essas perguntas. Contudo, tanto a razão, com suas infinitas conquistas, como fé, com sua experiência de transcendência, já nos permite enxergar a inteligibilidade, ou o espírito da própria natureza cujo sentido não é, de modo algum, dado pelo homem, mas por ela própria.

No momento em que vivemos, não há mais como separar os seres humanos, nem absolutamente nada, do meio ambiente natural. Os homens são apenas partes na organização de toda a vida no planeta, e o mundo só pode ser visto como uma rede de fenômenos interconectados e interdependentes. Conforme sentenciou o velho chefe sioux, “o que acontecer à terra acontecerá aos filhos da terra”. Nada obstante a confirmação científica de tais assertivas, as práticas dos homens permanecem desobedecendo a essa lógica, levando as pessoas a uma forte desilusão e a um marcado ceticismo quanto o atual estágio da civilização humana, a ponto de existirem correntes que entendem o ser humano como um impasse da natureza, fazendo ver que melhor seria se nos retirássemos da cena planetária, em razão de só sabermos destruir. Tais quais os dinossauros estaríamos, também, fadados a desaparecer.

A complexidade do nosso tempo gera as mais diversas perspectivas, entrementes não podemos perder de vista que a crise ambiental que vivenciamos tem como característica marcante o fato de ter sido por nós desencadeada. E, se foi por nós criada, temos a responsabilidade de procurar soluções para dirimir o aumento da degradação do meio ambiente, ao mesmo tempo em que devemos sanar os estragos já produzidos.

É correto, parece-me, vislumbrar o homem em uma posição sobranceira na terra, porém, como tudo na modernidade, essa posição é relativa. O ser humano agora está no centro porque gerou a crise ambiental e tem por obrigação contê-la e sanar suas conseqüências, não porque seja completamente superior aos outros seres. O direito caminha na atualidade rumo a um fundamento ecocêntrico, pretendendo uma extensão dos valores humanistas aos demais seres vivos e, em alguns casos, até não-vivos, relativizando a posição do ser humano, limitando suas prerrogativas na medida em que impõe restrições aos seus comportamentos que reduzem a diversidade e riqueza das formas da natureza, salvo, é claro, para satisfação de suas necessidades vitais.

Isso não significa, em absoluto, abjurar o fato de que a ordem jurídica foi criada pelo e para o ser humano, todavia demonstra a necessidade do dever de aproximação dos homens com o espaço telúrico, considerado fundamental para o bem estar de todos os seres viventes, de todos os que hoje habitamos o planeta e, certamente, daqueles que virão depois de nós.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O NOME EM OBRAS PÚBLICAS: O MERECIMENTO E O RIDÍCULO

O texto que segue foi escrito há, aproximadamente, um ano para um matutino local. Na época, as inaugurações de obras públicas destacavam por compadrio, como é comum no Brasil, o nome do homenageado. O artigo, para minha maior surpresa, foi agraciado com uma moção de reconhecimento e apoio pela Câmara de Vereadores de Maceió.

O Estado Democrático de Direito, ao consagrar o sistema representativo para gestão da coisa pública, erigiu como princípio reitor a impessoalidade. Não poderia ser diferente: as obrigações determinadas aos mandatários derivam da vontade dos mandantes, o povo, reveladas através das leis, e as realizações cumpridas por aqueles são bancadas com os dinheiros públicos arrecadados à custa de pesados tributos. Os gestores, definitivamente, não são iluminados que conseguem resolver, de uma hora para outra, os problemas da comunidade, pois o que colocam em prática é vinculado a regras pré-fixadas, seu espaço discricionário é mínimo e sua criatividade, quando possível, não é, senão, pressuposto para candidatura ao gerenciamento da coisa pública.

A vocação para ocupar todo e qualquer cargo público, do agente administrativo ao professor, do vereador ao deputado, do prefeito ao presidente, centra-se na dedicação. Contudo, os agentes políticos, mais do que todos os outros funcionários, são, ou deveriam ser, servidores exemplares, aptos a servir conscientes daquilo que lhes foi delegado, capazes de empreender esforços sem recompensas, pois ninguém é obrigado a ser mandatário ou gestor quando não se dispuser aos sacrifícios próprios do cargo.

Apesar do aparato legal vigente, a experiência brasileira sempre revelou práticas abusivas de autopromoção dos nossos representantes e autoridades. Deslumbrados face ao poder que detêm, ainda que pequeno e exercido em remotos rincões, paparicados pelos eternos bajuladores e empavonados com a aparição midiática, constroem estátuas e bustos caricatos. É corriqueira a designação de prédios, salas, salões, bibliotecas, ruas, ruelas, estradas e até, pasmem, banheiros públicos com os seus nomes. O que mais impressiona é a ingenuidade da perspectiva de verem suas imagens perpetuadas para a história, como se esta fosse estática e não construída em um processo dialético por sucessivas gerações. Não é sem razão, portanto, que as homenagens em edifícios públicos devem ser póstumas, pois que calcadas em longas discussões sobre o merecimento do homenageado.

Não são poucas as vozes, todavia, proclamando que não interessa ao morto a homenagem, mas só aos vivos que podem dela usufruir. Nada mais obtuso, porquanto, pretendendo justificá-la, acabam negando sua lógica. Homenagens dessa natureza se prestam ao julgamento das gerações futuras, mais capazes de aferir as grandes realizações que servem a todos como exemplo, únicas dignas de merecimento e que se sedimentarão na consciência coletiva fazendo parte das tradições de um povo. Nomes em edificações, imagens em avenidas, não encontrarão qualquer significado quando ausente a correlação das realizações da pessoa e o julgamento mais ou menos perene da coletividade. Estátuas assim somente servirão para as necessidades fisiológicas dos pássaros, sem muita demora serão olvidadas ou, mesmo, tombarão fisicamente.

As sociedades pós-modernas, ademais, não comportam as idealizações que, no passado, se fazia das lideranças. As imagens em bronze, o nome em praça e logradouros são dos tempos dos pioneiros, dos desbravadores, daqueles que forjavam as normas quando ainda não vingava o Estado de Direito. É a própria mídia que nos revela, hoje, lideranças de carne e osso, com algumas virtudes, mas, também, repletas de fraquezas. Na atualidade, a utilização dos nomes e imagens em obras públicas acaba servindo de mote para o escárnio aos detentores do poder, ante a ausência de senso de ridículo, sobretudo nas autopromoções ou nas homenagens por compadrio. Mas o risível não é punição para os néscios, já é hora de fazer valer a lei condenando-os em todas as esferas possíveis, obrigando-os, sempre, a devolver as verbas públicas empregadas de forma grotesca e indevida.


sexta-feira, 2 de outubro de 2009

DIREITOS HUMANOS E A NEGAÇÃO DA BARBÁRIE

As sociedades periféricas globais, ou aquilo que, antes, chamávamos terceiro mundo ou coletividades subdesenvolvidas, são marcadas por um sem-número de problemas. Há, por evidente, uma série de questões comuns a países culturalmente diferentes: a fome, por exemplo. Mas existem, também, problemas exclusivos ou muito mais concentrados em determinados países do que em outros. No Brasil, que, não obstante a melhora nos índices de desenvolvimento humano nos últimos lustros, não saiu ainda da periferia, a criminalidade tem encontrado índices preocupantes. Para além da endêmica corrupção, a maior das parideiras dos delitos, chama atenção o alarmante número de homicídios.

Em sociedades periféricas como a nossa, caracterizadas pela violência gerada pelas próprias instituições (morrer por falta de assistência médica, pagar propinas para reaver bens furtados, padecer nos péssimos transportes coletivos, perder direitos por ausência de acompanhamento jurídico etc), o impacto provocado pela criminalidade na população tem aumentado a sensação de insegurança produzindo a multiplicação das tendências agressivas das massas. Cairia bem, nesse caso, a explicação psicanalítica da figura do bode expiatório. Em todo ser humano existiria uma inclinação de transferir os seus aspectos mais negativos (inconscientemente) para uma terceira pessoa. Em lugar de voltar-se contra si próprio, cuidando de suas próprias culpas e frustrações, insulta-se e pune-se um terceiro externo.

No modelo do Estado Democrático de Direito, as sanções penais encontram limites construídos pela civilização e ditados cogente e imperativamente pelas leis, não sendo possíveis respostas que excedam ao determinado por elas. O excesso não é outra coisa senão violência injusta, máxime quando praticado por agentes do próprio estado, pagos pelos cofres públicos e, em tese, preparados exatamente para impedir as injustiças. Na teoria psicanalítica, há vertentes que afirmam que os agentes encarregados da reação penal podem, muitas vezes, identificar-se em demasia com a sociedade punitiva, descarregando seus impulsos agressivos na pessoa do suposto infrator. Com ou sem motivos psicológicos, todos nós sabemos onde termina esta história: torturas, violências covardes, constrangimentos ilegais.

Ninguém em sã consciência nega a possibilidade de ação e reação legal dos agentes do sistema penal. Em direito, há uma norma que torna lícito o comportamento daquele que age no cumprimento de um dever legal. Nenhum juiz é tão obtuso a ponto de não considerar, nesses casos, o excesso de adrenalina, as tensões havidas no embate, as circunstâncias da espécie, o histórico de honradez dos agentes. Ninguém que tenha o mínimo de sensibilidade deixa de se comover quando os agentes públicos tombam no exercício de sua função, tampouco deixa de reclamar melhores condições para a melhora de seu serviço. Por outro lado, não há motivo algum para legitimar ações deliberadamente excessivas. Não é possível, sob qualquer pretexto, permitir, a quem quer que seja, uma licença para matar, fazer sofrer, detratar, manipular, tripudiar, banir qualquer pessoa, ainda que ela venha a ser um facínora.

As instituições que defendem os direitos humanos servem, exatamente, para fiscalizar o Estado e seus agentes quando de suas respostas, lembrando que o ser humano, só pelo fato de ser Ser Humano, é intangível quanto a certos direitos. Não há proteção a “bandidos”, não há inibição às ações policiais enérgicas, há, isso sim, vigília pela coibição e repressão aos excessos indevidos e a afirmação, constante, do pacto civilizatório contra a barbárie.