quarta-feira, 20 de outubro de 2010

POLÍTICA, JUSTIÇA E ABORTO

Já escrevi neste blog sobre o aborto e parece que é necessário, mais uma vez, rever o que aqui ficou consignado diante dos derradeiros acontecimentos políticos no Brasil. Confundindo políticas públicas com ortodoxias religiosas e desinformação de parcela significativa da população, inseriu-se o debate sobre o aborto na perspectiva mais maledicente: a hipócrita. Vamos aos fatos. Um: todos nós conhecemos pelo menos um caso de abortamento voluntário. Sabemos que o aborto no Brasil só traz conseqüências, de saúde e criminais, para a parcela da população mais pobre. Se somos ricos, então vamos à Espanha pagamos o aborto e ponto final. Qualquer estudante de Direito Penal saberá, neste caso, que é impossível o processo no Brasil, vez que a extraterritorialidade é condicionada a dupla punibilidade. Dois: para as mulheres pobres sobram às parteiras e os balconistas de farmácia. Sinéquias uterinas, ablação do útero, lesões, mortes. Três: mais de dois milhões de mulheres fazem abortamento voluntário por ano no Brasil. Nunca dirigi, em 18 anos de magistratura, um só processo de abortamento consentido ou praticado pela gestante. Quatro: o DIU, dispositivo intrauterino é abortivo, todavia é permitido e usado largamente pelas mulheres no Brasil. Cinco: Prevalecendo a tese religiosa da existência de um Deus, o único autorizado a determinar o aborto, teríamos que proibir o abortamento necessário e o abortamento humanitário. Seis: a Constituição Federal não veda a descriminalização do abortamento, uma vez que a proteção a vida é taxativamente mencionada para brasileiros e estrangeiros. A nacionalidade tem como pressuposto a personalidade, assim a tutela constitucional dirige-se para aqueles que nascem com vida.

Excluindo as concepções religiosas, porquanto estamos em um Estado laico (estamos?), o principal argumento daqueles que são contrários ao abortamento é o de que o feto, desde a fecundação, é um ser humano e, como matar um ser humano é errado, não é justo matar um feto humano. Quatro objeções, já fiz consignar, são colocadas a esse raciocínio pelos que defendem a possibilidade do aborto. A que enfrenta o argumento central, patrocinada pelo professor Peter Singer, vale-se da hipótese de que o feto não é, ainda, um ser humano, mas um ser humano em formação, principalmente porque não é dotado de racionalidade e autoconsciência. Assim, os sérios interesses de uma mulher – um ser humano pleno, autoconsciente e racional –, devem sempre prevalecer sobre os interesses rudimentares do feto.

As outras três objeções não se dirigem contra o argumento central. A primeira é uma argumentação feminista defendida por Judith Thomson a qual reconhece o embrião como um ser humano, entretanto afirma que isso não dá a ele o direito ao uso do corpo de terceiros, mesmo que, sem esse uso, venha a morrer. A segunda, parte do princípio de que o tema aborto não é da alçada da lei. Em uma sociedade democrática, heterogênea e plural, é preciso tolerar as concepções morais divergentes quando elas digam respeito à esfera privada de cada um. A lei não pode reger questões restritas ao âmbito do indivíduo e, assim, ficaria ao alvedrio da interessada a decisão de abortar.

A terceira e última argumentação toma por base, fundada em dados empíricos, uma assertiva que me parece incontestável: as leis que proíbem o abortamento, ao invés de o inibirem, aumentam sua prática. Ou seja, não há nada mais inútil do que se dizer contra ou favorável ao abortamento, a pergunta, na verdade, diz respeito ao fato de se saber se a criminalização é producente ou, ao contrário, contraproducente. Em um importante estudo na Stanford Law School, John Donohue e Steven Levitt comprovam que, nos Estados americanos onde o aborto é proibido, há mais abortos que nos Estados americanos onde ele é permitido, o que coincide, inclusive, com a experiência alemã pós-lei permissiva do abortamento. Dados da Organização Mundial da Saúde indicam que, no Brasil, há mais de dois milhões de abortamentos voluntários por ano, deixando patente a inadequação das leis criminalizadoras para resolução do problema.

É comum o desespero das mulheres – principalmente daquelas economicamente desfavorecidas –, que desejam fazer um aborto. A criminalização as leva à procura de aborteiros, clínicas clandestinas, remédios sem receita, não havendo, pois, apoio nem orientação do Estado. As conseqüências são desastrosas com sérias complicações para a saúde e, não raro, a morte da mulher. A resposta penal, nesse caso, é contraproducente, nem inibe o comportamento tido por delituoso, muito menos castiga ou recupera as pessoas envolvidas, mesmo porque os processos de aborto são raríssimos no Sistema de Justiça Criminal brasileiro.

É que, neste caso, vale a ponderação de Thomas Mathiesen, a ineficiência preventiva da criminalização se constitui, no fundo, em um problema de comunicação. A punição seria um modo pelo qual o Estado tenta comunicar mensagens, especialmente para grupos vulneráveis no seio social. Esse método de comunicação é muito tosco. A própria mensagem é de difícil transmissão, dada a incomensurabilidade da ação e da reação. Para Mathiesen, o que surpreende mais não é o efeito mínimo da comunicação do castigo desejando obter a inibição do comportamento, mas a persistente crença política em tal meio de comunicação primário.

Parece que a melhor resposta é a legalização racional e responsável do abortamento voluntário, com limite temporal e a necessidade de autorização administrativa para abortar. A mulher que deseja o aborto deve, obrigatoriamente, consultar um médico, que lhe explicará os efeitos clínicos do procedimento e as conseqüências, presentes e futuras, para o seu corpo; um psicólogo, que lhe revelará os efeitos para sua mente; um assistente social, que poderá convencê-la, inclusive, a manter a gravidez, mostrando o caminho da família substituta. Ao cabo de um processo que prima pela assistência, é natural que muitas mulheres desistam de abortar, o que explica um maior número de abortos nos países que o proíbem. As que, ainda assim, insistem no aborto têm proteção assegurada à sua saúde e à sua vida.

Seria muito importante que os dois candidatos à Presidência da República, ambos com ampla consciência do problema, discutissem o abortamento sob a perspectiva de propostas efetivamente dirigidas às políticas públicas voltadas ao atendimento de mais de dois milhões de brasileiras, e não pelas pesquisas qualitativas produzidas sobre o tema. Quem sabe, assim, fosse mais fácil enfrentar o moralismo decadente dos ortodoxos religiosos e dos conservadores e modificar o moralismo desinformado de grande parte da nossa população. Tudo isso para não mencionar a necessidade de discussão, na pauta das candidaturas, sobre tratamento de milhares de pessoas com as células troncos advindas de embriões que podem ser descartados.

Não creio, finalmente, que nenhuma pessoa – considerada por um observador razoável como normal – venha a ser favorável a que se mate, deliberadamente, um feto humano sem que haja interesses mais caros a serem preservados. Vale repetir a percepção de Jorge Luis Borges sobre o problema: “instintivamente considero-o um crime. Ao mesmo tempo sei que essa repulsa corresponde a minha geração. Acho que deve ser legalizado; a razão me diz que sim; o instinto, que não. Diz-se que o aborto destrói a possibilidade de um Shakespeare; também a de um Macbeth.”

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