terça-feira, 12 de janeiro de 2010

TOLERÂNCIA E IMPUNIDADE


      "Um  dos maiores freios dos delitos não é a crueldade das penas, mas a sua infalibilidade." (BECCARIA Cesare. Dos Delitos e das Penas, XXVII).   

      O Estado Democrático de Direito consagrou a junção dos princípios próprios do Estado Liberal e dos princípios inerentes ao Estado Social, traduzindo-se numa superação dos dois modelos. O Estado, nessa concepção, não é mais neutro e menos ainda o “inimigo dos direitos fundamentais”, todavia passa a ser presente na assistência desses próprios direitos, vistos, não só e sempre, como “direitos contra o Estado”, mas, também, “através do Estado”. Neste modelo de Estado, como aponta Santiago Mir Puig, “a pena há de cumprir uma missão política de regulação ativa da vida social que assegure seu funcionamento satisfatório, mediante a proteção dos bens dos cidadãos”. (BARROS LIMA, Alberto Jorge Correia de. Direito Penal e Constituição: Para Além da Legalidade Formal. Revista do Mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas, v. 02, p. 113-133, 2006).



 O Brasil é um país tolerante com a criminalidade violenta. O Brasil é um país tolerante com a corrupção. O Brasil é um país tolerante com a tortura e com os crimes cometidos pelos militares durante os anos de chumbo da ditadura.

 Temos uma das legislações mais benevolentes do mundo com os delitos de homicídio na direção de veículo automotor. Estamos enfastiados, aborrecidos mesmo, com a repetição enfadonha, mas triste, das mortes provocadas por acidente de trânsito, a maioria envolvendo bebidas alcoólicas. O Brasil é um país tolerante com a propaganda de bebidas alcoólicas.

 Os crimes praticados com violência contra a pessoa (v.g. homicídio, roubo, estupro), têm penas demasiadamente brandas. Pior, mesmo considerando racionais as punições previstas, nas poucas vezes em que o sistema de justiça criminal consegue condenar alguém, as penas não são efetivadas. A prisão é rara, na maioria dos casos ninguém cumpre sequer 20% desta sanção quando imposta em regime fechado. Os regimes semi-aberto e aberto são de mentirinha – não conheço colônias agro-industriais ou casas de albergado que consigam desempenhar as funções previstas na Lei de Execução Penal. A liberdade condicional, basta fazer uma pesquisa em qualquer cidade brasileira, não tem, praticamente, qualquer fiscalização. As medidas restritivas de direito e a multa penal são institutos com aplicação pífia (os acadêmicos podem comprovar trabalhando empiricamente para um PIBIC, TCC ou dissertação).

 A aprovação do projeto que modifica o Código de Processo Penal (veja aqui) pode significar o enterro definitivo das possibilidades de atuação realista da justiça criminal. O bizarro projeto carrega consigo a vetusta e cartorária herança portuguesa e italiana da burocratização de todos os procedimentos. Buscando, em algumas partes, elementos do direito anglo-saxão, os autores do anteprojeto não perceberam que o direito inglês e americano são, em termos processuais, fundados na absoluta oralidade. A quantidade de recursos, que, para qualquer pessoa com o mínimo de senso, já significam um total disparate, são mantidos e alargados. Temos no Brasil quatro instâncias, e, nos crimes contra a vida, os que exigem uma resposta mais rápida, temos oito, porquanto os caminhos são percorridos duplamente, uma na fase do judicium acusaciones, outro no estágio do judicium causae. O Brasil é um país tolerante com o homicídio. Nossos índices de assassinatos são considerados epidemiológicos. (A Alemanha, Austrália, Áustria, China, Espanha, França, Japão e o Reino Unido, para ficar no exemplo, apresentam taxas menores que um [1] óbito por 100 mil habitantes. No Brasil, a taxa de mortalidade específica por homicídio apresentou cifra de 28 óbitos por 100 mil habitantes em 2003 [veja aqui o estudo do Ministério da Saúde]. Em 2008 houve uma variação para menos, mais ainda assim tivemos mais de 46.000 pessoas assassinadas em todo território nacional. Em 2009 os indicativos em Alagoas estão em torno de 66 homicídios para cada 100 mil habitantes. Acima de 10 óbitos por 100 mil habitantes a OMS já considera o problema epidemiológico).

 O Decreto do Plano Nacional de Direitos Humanos (leiam na íntegra aqui para tirar suas conclusões, mas, atenção, leiam) escandaliza os direitopatas, os quais “esquecem” que os torturados da ditadura, alcunhados por ela de “terroristas” e “subversivos”, eram os resistentes e, portanto, não há que se falar em crimes. O direito de resistência não é outra coisa senão uma legítima defesa contra os estados ditatoriais e autoritários. Muitos, na ditadura militar, para além de assassinar, estuprar e torturar, pilharam os cofres públicos, distribuíram riquezas para algumas famílias privilegiadas e, capciosamente, concessões de jornais, rádios e TVs Brasil afora. Não é à toa que tenham tantos defensores. Teríamos sim, na esteira do que foi feito no Chile e na Argentina, que punir os transgressores, com tribunais regulares e o devido processo legal. Isso é justiça, não é vingança.

 Os esquerdopatas olvidam, por sua vez, que pobres também cometem crimes e não é pelo fato de serem pobres ou pertencentes a qualquer grupo de excluídos, que não devam ser punidos. O Brasil já romanceou demais malfeitores por serem pobres. A inversão que seria importante para fazer um contraponto à baixa punibilidade dos estratos economicamente favorecidos transformou-se num bordão ridículo que legitima, por pretender justificar, a conduta criminosa dos desfavorecidos, ainda que ela atinja – enorme contra-senso –, em cheio, a grande massa de homens e mulheres decentes e economicamente deficitários.

 Por outro lado, nem é preciso mencionar as imunidades de fato e as imunidades de direito que algumas categorias de agentes políticos detêm no país, o que os autoriza a praticar, impunemente, qualquer delito.

 Não, não é difícil explicar a multiplicação da violência criminosa no Brasil, embora muitos penalistas, ainda influenciados pelos postulados do iluminismo, ingenuamente não acreditem no que eles cognominam de “filosofia do castigo”, algo que nós nunca conseguimos implementar no marco de um sistema de justiça criminal realista e oficial.

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