quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

TIPO PENAL E TAXATIVIDADE A PARTIR DE UM EXEMPLO

 Um exemplo ditado por Johannes Wessels vai nos permitir discorrer um pouco sobre o tipo penal e taxatividade antes do início das aulas:

 “O solteirão J descobriu um novo hobby: cria pássaros canoros, que depois vende aos interessados. Um dia, porém, adquire uma forte gripe e é cuidado pela enfermeira K. Esta, durante uma de suas visitas e por amor aos animais, abre a gaiola e faz com que os pássaros fujam. K possui a concepção de que os pássaros pertencem à natureza e não a uma gaiola.
 O comportamento de K é punível como furto ('Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa') ou como dano ('Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa')?”

 O tipo objetivo é a descrição jurídica abstrata, o texto que descreve a conduta, ou, para alguns, o enunciado sobre a norma imperativa elíptica que expressa os elementos do comportamento ditado por ela. É, em síntese, a descrição do comportamento proibido. Difere, pois, de tipicidade, que, segundo Muñoz Conde, “é a qualidade que se atribui a um comportamento, quando é subsumível a hipótese de fato de uma norma penal”. O tipo, nos diz Zaffaroni, “pertence à lei enquanto a tipicidade pertence à conduta. Tipo é a fórmula legal que permite averiguar a tipicidade da conduta”. Os alemães denominaram de tatbestand o que em língua portuguesa traduz-se para tipicidade. Já os italianos utilizam a expressão fattispecie, o que significa espécie de fato. A doutrina brasileira, majoritariamente, entende a tipicidade como indício da ilicitude(1) .

 Voltando para o tipo, é importante não esquecer que a Carta Federal o erigiu à garantia constitucional consoante disposto no art. 5º, XXXIX: "não há crime sem lei anterior que o defina...", agasalhando, assim, a Constituição de 1988, através do princípio da legalidade, o corolário da taxatividade. Tal garantia assegura a todos de que a persecução penal, a cargo do Estado, só pode vingar naqueles comportamentos definidos, de modo estrito, em lei criminalizadora.

 A taxatividade ou a determinação taxativa é uma imposição do princípio constitucional da legalidade penal, que consiste, segundo a maioria da doutrina, na exigência, imposta ao legislador, de precisão quanto às expressões utilizadas na feitura do texto da norma (= tipo ou tipo objetivo), proibindo-o de empregar termos vagos, ambíguos e indeterminados, com a finalidade de limitar o espaço discricionário do juiz.

 Sua elaboração científica mais aprofundada deve-se à doutrina tedesca que, tradicionalmente, afere as relações filosóficas e metodológicas nas relações entre o juiz e a lei. Seguindo a construção alemã, marcada pela sensibilidade constitucionalista, pode-se afirmar, com Palazzo, que a determinação taxativa funciona como garantia diante do poder punitivo-judiciário, encarregada de firmar a exclusiva eticidade do direito, constituída da certeza jurídica e de operar, “qual pressuposto objetivo de cognoscibilidade da norma, uma valoração e responsabilidade do homem”.

 No entanto, vedação de palavras vagas, ambíguas e indefinidas torna-se, em termos absolutos, tarefa de difícil elaboração. Assim, pode-se objetar, com Rosa Maria Cardoso da Cunha, que a lei penal “reproduz significações ditadas por códigos lingüísticos e por múltiplos processos de interação social”; os termos contidos na lei não são unívocos; mesmo que qualificadas como técnicas, as palavras da lei mantêm, também, imprecisões; o signo submete-se à gradual e incessante mudança em sua significação, frente ao tempo e determinada por forças sociais e históricas; o signo depende de sua correlação com a totalidade e outros signos. Por fim, pode-se, ainda, colocar a “dependência que a significação jurídica possui de termos que integram campos associativos ausentes em seu discurso”.

 Contudo, é preciso assinalar, diferentemente do que ensina os nossos manuais, que o princípio da legalidade, nessa imposição, determina, na verdade, ao legislador, o mínimo de imprecisão possível. Se, no delineamento da conduta proibida, não é exatamente factível uma descrição categórica, que a proposição seja menos obscura, que as ambigüidades sejam diminuídas, ou seja, estreite-se, o quanto puder, a margem discricionária do intérprete, a qual, no entanto, sempre estará presente.

 A determinação taxativa impõe ao legislador não precisões e exatidões, as quais são impossíveis para o ser humano, mas rigor de linguagem através dos instrumentos de técnica legislativa, postos, exatamente, para isso.

 Na feitura do tipo, se não é possível exigir uma descrição casuística de cada conduta incriminada, não se pode admitir a utilização de cláusulas genéricas. A utilização dessas cláusulas não permite a percepção das diferenças materiais existentes entre os fatos regulados. O legislador, segundo Hans-Heinrich Jescheck, está obrigado não só a “classificar as características diferenciais que são decisivas para circunscrever os tipos penais, senão, também, destacá-las com o emprego de conceitos específicos gerais”. Por tudo isso é possível destacar a proibição de analogia in malam partem como desdobramento necessário e outro importante consectário do princípio da legalidade penal.

 Respondendo, agora, a questão posta por Wessels no início, é possível dizer que o comportamento de K não é punível. Nenhum dos dois tipos penais transcritos acima subsume-se à hipótese. Não houve subtração, que é a retirada da coisa para si ou para outrem (assenhoreamento), nem houve destruição (aniquilação da coisa por inteiro), inutilização (imprestabilidade da coisa para o fim que se destina), ou deterioração da coisa (mero estrago ou conspurcação da coisa). O pássaro, portanto, não foi subtraído, nem sofreu dano, conforme a estrita descrição típica. Na espécie, o fato é atípico para o Direito Penal, restando a J o manejo da indenização no cível.
___________________________
(1) Teoria indiciária (ratio cognoscendi) de Max Ernst Mayer. Há seguidores de Edmund Mezger, no entanto, que defendem que a tipicidade e a ilicitude formam um todo unitário. O tipo, assim, identificar-se-ia com a ilicitude (ratio essendi). Sobre a questão é interessante o estudo da teoria dos elementos negativos do tipo e da tipicidade conglobante, esta última defendida por Zaffaroni.

Nenhum comentário: