O artigo abaixo foi publicado em “O Jornal” (coluna “Opinião”) quando a imprensa brasileira, aqui entendida como os grupos dominantes da mídia nacional, criticava, na esteira do Governo Federal, o jejum do Bispo de Barra, Dom Cappio, contra a transposição do rio São Francisco. Alterei apenas o tempo dos verbos, mas o texto permanece atual como o problema da transposição. A publicação no Blog vale, parece-me, pelo silêncio sepulcral que se fez no Brasil sobre o tema após o começo (!?) das obras. Vale ainda para que nós, tão mundanos e presunçosos, reflitamos, sempre, sobre as nossas ações e nossa soberba.
O RIO, O BISPO E O DIREITO DE RESISTÊNCIA
O rio São Francisco é um patrimônio do mundo. O maior rio nacional do Brasil banha os estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, drenando uma área aproximada de 641.000km². Não é à toa, portanto, que é chamado de rio da integração nacional. Porém, o velho Chico vem claudicando nas últimas décadas em razão dos estragos produzidos pelo ser humano na natureza. Intervenções em seu curso para barragens e hidrelétricas, destruição das matas ciliares, poluição generalizada e maltrato idêntico aos seus afluentes tem sido fatores que contribuem para sua degradação.
Acompanhando, de perto, o sofrimento do rio e das populações ribeirinhas, o frei Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra na Bahia, insurgiu-se contra o projeto de transposição encampado pelo governo do Presidente Lula e modelado, principalmente, na gestão do então Ministro da Integração Nacional, o cearense Ciro Gomes, o principal defensor da idéia. A insurgência pautava-se pela ausência de um amplo debate público sobre o projeto governamental em confronto com as críticas e alternativas existentes, conforme prometido pelo próprio Presidente da República. A forma adotada para a revolta contra a posição do governo foi o jejum ou, como etiquetou a mídia, a “greve de fome”, que durou, aproximadamente, um mês e deixou Cappio oito quilos mais magro.
Diferente da ação de muitos setores da sociedade civil – que só pensam nos seus interesses coorporativos e em questões burlescas –, a “greve” do bispo foi plural e democrática. Centrou-se, é claro, na preocupação com as populações ribeirinhas que ele tanto conhece, mas foi (é) extensiva a todos nós e às futuras gerações. Para além, sua posição encontrou amparo ecocêntrico em virtude de considerar os outros seres vivos, animais e vegetais e mesmo não vivos, como os minerais e a própria água.
O jejum de Cappio deve ser lembrado e, inclusive, reconhecido juridicamente, como exercício do direito de resistência, implicitamente extraído da Carta Constitucional. Os princípios da dignidade da pessoa humana e do pluralismo político, erguidos como alicerces do Estado Democrático de Direito, permitem a integração para o interior da ordem constitucional, não há dúvidas, de outros direitos decorrentes do regime e dos princípios pela Constituição adotados. É o caso do direito de resistência, o qual revela, não só uma perspectiva jurídica, mas uma forte dimensão política, aqui compreendida no sentido escorreito do vocábulo.
A ação do bispo, de modo algum, deve ser lembrada como desproporcional, louca, autoritária ou contrária aos mandamentos cristãos como atacaram os ávidos mensageiros do Planalto, aqueles que têm interesse na transposição e alguns críticos apressados por descredenciá-lo. Seu jejum gritou, e ainda ecoa, por uma grande discussão nacional acerca dos impactos ambientais produzidos pela transposição, suas prováveis conseqüências nefastas e as alternativas que são viáveis. Sua “greve” perseguiu a transparência cabal e a boa utilização dos recursos públicos vultosos pertencentes ao contribuinte brasileiro: quanto vai custar à transposição? Quais são as empreiteiras destinadas a assumir a obra? Para quem se destinará a água? Quanto custará e quem pode pagar por ela? Sua “fome” se irmanou à fome das populações ribeirinhas que nunca tiveram suas terras irrigadas, sem embargos do rio margear suas pequenas glebas.
Brecht afirmava que há homens que lutam um dia e são bons; há aqueles que lutam anos e são muito bons; mas há os que lutam a vida inteira, estes são os imprescindíveis. Dom Cappio foi além, lutou se doando. Seu jejum foi um gesto franciscano, franciscano como ele e o rio. No seu embate-doação nos ensinou sobre os possíveis efeitos do deslocamento das águas, todavia, sua lição principal – não podemos olvidar –, é pertinente a cidadania, ou seja, à insurgência contra as más políticas públicas e as impropriedades dos governantes, sem interesses próprios em jogo. Sua ontologia de vida, por mais que não se enquadre na dinâmica relativista das sociedades pós-modernas, admira e impacta a todos nós – pobres críticos de botequins, gabinetes e redações – por revelar a beleza de amar mais que ser amado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário