segunda-feira, 4 de maio de 2015

QUE REFORMA POLÍTICA?



No final de um ciclo e no início de outro a crença em melhores tempos renova-se. A esperança faz parte da condição humana, ainda que saibamos que a mudança dos anos não deixa de ser mais uma convenção. Todavia, embalados por essa perspectiva contagiante, sentindo, também, os derradeiros reflexos das manifestações de junho de 2013 que inflamaram o Brasil e, finalmente, indignados com um gravíssimo escândalo de corrupção, voltamos a falar, desde o início do ano, na reforma do sistema político e eleitoral brasileiro. O problema, porém, é que somos pautados.  

Pautam-nos com proposições populistas. A proposta de plebiscito ou referendo é absolutamente inviável para matéria que exige abordagem extensa e, em muitos aspectos, eminentemente técnica – além de complexos, os diversos sistemas políticos e eleitorais têm defeitos e qualidades. O voto distrital misto, exemplificando, em um país com as dimensões territoriais do Brasil, implicaria ou em um aumento absurdo e indesejado do número de deputados, ou, então, em desequilíbrio gravíssimo de representação.

Pautam-nos com “modificações” que não mexem na essência, como o financiamento público de campanha – esse sim de interesses de muitos políticos –, destinado a iludir os incautos de que barraria a influência do poder econômico nas eleições, mas que, na verdade, só gera mais despesas para o bolso do combalido contribuinte brasileiro, sem conseguir estancar o que “entra por fora”, o caixa dois e o apetite voraz e desmedido dos corruptos. O financiamento público é um conto da carochinha em um país que, para além da notória dificuldade de fiscalização, ter as contas de campanha rejeitadas pela Justiça Eleitoral, ou aprovadas com ressalvas – seja lá o que isso queira significar – não traz consequência nenhuma para o infrator e, cá para nós, o corrupto passivo deixa de ser corrupto pela origem da verba? A discussão é outra e diz respeito aos limites de gasto.

Não me parece saudável a limitação dos partidos com a utilização da cláusula de barreira. Acredito que o fim das coligações para as eleições proporcionais (deputados federais, estaduais, distritais e vereadores) seria um passo interessante para conter os nanicos sem representatividade e os partidos de aluguel. Além disto, o passo seguinte nesta direção é estabelecer regras rígidas – e ai, sim, ingressaria a representatividade de cada grêmio partidário no Congresso Nacional – para a propaganda no rádio e na TV.

De resto, a votação apenas em listas (candidatos escolhidos pelos partidos em convenção) e o fim da obrigatoriedade do voto não encontram sentido na história e na realidade brasileira. Não temos partidos fortes e não nos identificamos, ainda, com eles, porém com os candidatos. Este é um processo que precisa ser construído pelas agremiações partidárias no mundo dos fatos. Quanto ao fim da obrigatoriedade do sufrágio todos sabem que a multa por não votar é risível e que a anistia ao eleitor faltoso vem antes do que ele espera. Entre nós há uma obrigatoriedade que não obriga tanto.

A unificação das eleições (a federal e estadual com a municipal) e a constituinte específica para tratamento de toda a reforma é algo difícil de imaginar em terra com tantos políticos profissionais. Eles vão permitir? Duvido.

Finalmente, porque nos pautam? O fazem para não discutirmos as modificações que importam, como a principal: o fim da profissionalização da política. O máximo que poderíamos permitir, em nome da participação plural – esta sim democrática –, era apenas uma reeleição em uma única esfera eletiva. Eleito vereador, deputado estadual, distrital, federal, senador, prefeito, governador e presidente da república, só seria possível candidatar-se para o cargo eletivo exercido, e exercer o mandato mais uma vez. Ganhando, após o término do segundo mandato, o indivíduo retornaria ao seu trabalho, retomaria o seu cotidiano, com o reconhecimento pela contribuição prestada à nação, ao estado ao seu município.

Contudo há outras matérias fundamentais. Não temos, por exemplo, que ter Câmaras de Vereadores em cidades com menos de cem mil habitantes (carecemos mesmo delas?), precisamos, urgentemente, pôr fim à maioria das imunidades parlamentares, por que não se menciona mais isso?  

O que interessa não aparece, embora nossos políticos falem em reforma. Sei que não leram Lampedusa, no entanto, tal qual o príncipe de Falconeri, eles só permitem uma mudança: “tudo deve mudar para que fique como está”.

* Artigo publicado no jornal Gazeta de Alagoas (Edição de 18 de janeiro de 2015).


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

“PENA DE MORTE E MISTÉRIO”


   O título deste artigo é uma homenagem a Miguel Reale, um dos mais importantes jusfilósofos brasileiros, escritor de um denso texto com o mesmo nome. Citando Heidegger, afirmava ele que todos nós estamos destinados a nossa morte. Este é um fato futuro e certo, inexorável, e que mesmo Lázaro, ressuscitado, teve que sucumbir novamente – ao menos não me consta que ainda esteja vivo. Todavia, é legítimo que o Estado sob o argumento da aplicação de uma pena – mesmo para crimes bárbaros –, possa retirar a vida do indivíduo? Dizia Reale que não, e argumentava que a própria locução “pena de morte” é antitética, porquanto a ideia de pena pressupõe alguém vivo para cumpri-la. A chamada “pena de morte”, não seria outra coisa senão uma antecipação do momento particular final que destrói não só o sujeito físico como a pessoa em sua representação social e jurídica.  
  No pacto social, pressuposto que nos conduziu, no ocidente, a formação do Estado Moderno, não restou consentido à possibilidade de cessão da vida, mas tão só de parte da nossa liberdade. Para além, a morte aplicada como sanção, a luz de tantas pesquisas, não reduz a criminalidade e sempre pode provocar a suprema injustiça com os inocentes, afinal dela, seguramente, não há volta. 
  Em uma perspectiva teológica escreveu São Tomas de Aquino que só Deus decide o momento que devemos morrer. Por mais absurdo que pareça, algumas nações, de tão apegadas a essa prédica, já puniram a tentativa de suicídio com a pena de morte e muitos cristãos que conhecemos são favoráveis a ela para certos crimes. 
  Há quem sustente que o ser humano e suas características únicas e fundamentais – liberdade, dignidade, fim próprio – são, na verdade, anteriores e superiores ao Direito, que, com o Estado, constituem simples meios quando se consideram em relação aos valores supremos da pessoa. Em um aporte antropocêntrico, Kant afirmava que homem é o único ser que não pode ser considerado meio para qualquer fim, porque ele é um fim em si mesmo. Desse modo o condenado não pode ser tratado como “meio” ou coisa, senão como um “fim” ou pessoa. O valor da pessoa humana implica, assim, uma limitação fundamental e perene do Estado, independente das razões utilitárias ou quaisquer outras que venham a surgir. 
  Isso não significa deixar de lado a responsabilização do delinquente, tampouco que o cumprimento da pena, especialmente da pena privativa de liberdade, se dê sem dano, sem dor, sem angústia, o que seria utópico.  Penalizar, pois, é possível e necessário, entretanto não se pode fazer da pena a violência contra a violência, máxime porque enquanto no delito a violência costuma ser ocasional e, às vezes, impulsiva, a violência da sanção é programada, consciente, organizada por muitos contra um só. 
  A execução do traficante brasileiro, na distante e insólita Indonésia, causou, entre nós, tanto indignação, quanto apoio. A indignação ocorreu, entre outros motivos, pelo paralelo entre a pena de prisão imposta para terroristas indonésios, já libertados, e a execução de estrangeiros por tráfico de drogas, que revelaria desproporcionalidade e deslegitimaria o sistema jurídico daquele país.
  O apoio – parece que da maioria – é, contudo compreensível.  Primeiro porque a sanção ocorreu sob paradigmas formais e estabelecidos previamente, em que o condenado defendeu-se, diferente do que acontece no Brasil onde a “pena de morte” é diária e uma via usada tanto por agentes do Estado, como por bandidos, relacionada, muitas vezes, exatamente, por problemas com drogas. Segundo, e mais importante, porque a sensação de impunidade aqui existente não é fruto do caleidoscópio da mídia sensacionalista, mas real: nosso sistema penal é frouxo e não intimida, derrapando para insegurança diária que oprime a todos.   
  A morte de alguém, finalmente, para além do mistério que envolve, é a primeira resposta encontrada por nosso instinto quando maltratado o nosso ego. No fundo, mesmo os mais humanistas e intransigentes defensores da abolição da pena capital não podem escapar dos impulsos recônditos que os fazem, por vezes, desejar a morte – suprema ironia – daqueles que são, somente, contrários as suas ideias. Que o eterno Eros, seguindo a profecia freudiana, desdobre suas forças para se afirmar neste embate entre o primitivo que habita em nós e a civilização que precisamos para conviver.