Menos de um
ano após iniciados os trabalhos para reforma do Código Penal o texto, elaborado
por Comissão indicada pelo Senado e já entregue, padece de muitos problemas
técnicos, não enfrenta questões importantes e revela-se, em muitas passagens,
fruto de uma ideologia calcada no chamado “Direito
Penal Soft”.
Não obstante os aspectos positivos, como a
adequação de determinados delitos à sociedade tecnológica contemporânea, a
opção por condensar grande parte da legislação extravagante em um só documento
foge as características dos micros sistemas e suas especificidades e por isso
preocupa. É evidente que todo o arcabouço penal, por constituir-se em um
sistema, implica em necessária harmonia e coerência, todavia isso não significa
que seja preciso juntar todos os crimes, com as suas particularidades e
imbricações com áreas das mais diversas, no corpo do Código Penal.
Embora o
destaque da imprensa tenha sido para a Parte Especial do Código, ou seja, para
as normas incriminadoras, a modificação da Parte Geral, que é toda de 1984 e
muito mais importante, carece de cuidados redobrados.
Notem, por exemplo, a redação dada ao
parágrafo 2º do artigo 3º:
“O juiz poderá combinar leis penais
sucessivas, no que nelas exista de mais benigno”.
O dispositivo, com o propósito de adotar a
teoria da ponderação diferenciada, banindo, acertadamente, a posição atual do
STF que defende a teoria da ponderação unitária, derrapa na confusão que incide
amplos setores da doutrina nacional quando não distinguem, escorreitamente,
lei, texto e norma. Para não contrariar o rigor técnico o parágrafo poderia ter
sido assim redigido:
“Na hipótese de sucessão de leis
penais, as normas mais benéficas possuirão extra-atividade.”
O juiz, como cediço, não "combina leis". As
normas sacadas do texto veiculado pela lei é que podem possuir retroatividade e
ultratividade, desde que favoráveis ao agente. É assim que o magistrado deve
determinar a aplicação dos aspectos mais favoráveis aplicando-os ao caso
concreto (Bustos Ramirez, Frederico Marques, Cezar Bitencourt). Ademais, o
vício da formulação “o juiz poderá” permanece.
A Comissão, olvidando a doutrina internacional
e hoje a melhor doutrina nacional, parece querer fazer valer a noção dicotômica
de delito, banindo a culpabilidade para um território desconhecido e alheio ao
do fato criminoso (vide parágrafo único do art. 1º, arts. 28 e 31), apesar de
que não mantenha, por vezes, a coerência interna (vide o § 1º do art. 35). Ora,
não precisa firmar que “não há pena sem culpabilidade”, pois não há pena sem
fato ilícito (“antijurídico”) e não há pena sem fato típico.
Pertinente às penas, o anteprojeto escorrega
em vários pontos. Substituir a expressão “penas privativas de liberdade” por
pena de prisão, representa, no mínimo, falta de precisão. É estranho o
cumprimento de “prisão” em regime aberto.
Prisão significa captura, lugar fechado,
cativeiro, e, ainda quando implique em pena, tal significação está imbricada
com a ideia de cárcere.
Não há nenhuma tentativa de resolver os
problemas atinentes ao regime progressivo. Todos nós sabemos que o regime
semiaberto praticamente não funciona e o regime aberto não existe. Tanto isso é
verdade que o anteprojeto institucionaliza no artigo 47, § 4º a realidade
fática, verbis:
"Se,
por razão atribuída ao Poder Público não houver vaga em estabelecimento
penitenciário apropriado para a execução da pena em regime semiaberto, o apenado
terá direito à progressão diretamente para o regime aberto"
Nessa senda,
poderia ter ido além e previsto um dispositivo ainda mais bizarro:
"Se,
por razão atribuída ao Poder Público não houver vaga em estabelecimento
penitenciário apropriado para a execução da pena em regime aberto, o apenado
terá direito à progressão diretamente para “recolhimento”
domiciliar, aos cuidados de sua família."
Na versão do Relator o anteprojeto iria
desobedecer a mandamento constitucional criminalizador (art. 5º, XLVI, b) e solapar a pena de perda
de bens e valores. Um absurdo, pois se trata de uma excelente medida para os
crimes contra ordem econômica, financeira e tributária. Como incide sobre o
patrimônio privado lícito do condenado há uma grita de alguns setores
doutrinários de que ela tem caráter confiscatório. Tolice, pois é uma sanção
penal, a qual pressupõe, necessariamente, que o crime tenha causado prejuízo
econômico ao ofendido ou, ainda, tenha propiciado vantagem econômica ao
condenado ou a terceiros. Seu valor terá como teto o que for maior: ou o montante do prejuízo causado ou provento obtido pelo agente ou terceiro.
Felizmente a
Comissão manteve a pena, admitindo-a, também, como conversão da multa. Influenciada, talvez, por aqueles que enxergam
o caráter, exclusivamente, cível da perda de bens e valores, a Comissão olvidou o princípio da união ou
cumulação o qual, no processo penal, procura-se resolver os problemas que seriam
enfrentados no processo civil, tornando mais rápida à solução do problema, em
especial para as vítimas sofridas pelas agruras do crime. Assim, decidiu que o pagamento será feito, somente, ao Fundo Penitenciário Nacional e não
mais à(s) vítima(s), embora resalve a “legislação especial”.
São muitas as questões não enfrentadas
devidamente, como sistema de aplicação da pena por exemplo. Tudo isso para não
mencionar a profusão de questionamentos na Parte Especial (ortotanásia;
descriminalização, em parte, do aborto; recrudescimento para o abuso de autoridade;
descriminalização, em parte, do furto, criminalização do jogo do bicho;
criminalização do “enriquecimento ilícito” para servidores públicos os quais,
passariam a ter obrigação de fazer prova da sua evolução patrimonial, delação
premiadíssima, com o perdão pleno para o delator, etc, etc, etc.).
Parece que
Congresso Nacional encontrará muitas dificuldades para iniciar o trabalho
legislativo que vai valer de verdade.
Por enquanto, confiram o anteprojeto.
Anteprojeto Codigo Penal