O abolicionismo, como o próprio nome estabelece, propõe, a bem da verdade, a extinção do Direito Penal. Aqui, sem tecer quaisquer críticas, tentaremos, em apertado escorço, sintetizar as razões do abolicionismo dos noruegueses Nils Christie e Thomas Mathiesen e do holandês Louk Hulsman, este último falecido em janeiro do ano passado.
Hulsman faz ver que há várias razões para a abolição total do sistema penal. Primeiro, o sistema não tem efeito positivo sobre as pessoas envolvidas no conflito; segundo, causa demasiados sofrimentos, desnecessários, os quais se dividem socialmente de modo injusto; e terceiro, é bastante difícil de ser mantido sob controle. Segundo Hulsman, o questionamento a ser feito é a noção mesma de crime e com ela a noção de autor. Sustenta, deste modo, que a lei cria o crime e o criminoso, pois aquele não existe como realidade ontológica. Quanto a este, por conta da influência moral maniqueísta, herdada da escolástica, é fabricado pela lei como culpado. “O sistema penal fabrica culpados, na medida em que seu funcionamento mesmo se apóia na afirmação da culpabilidade de um dos protagonistas, pouco importando a compreensão e a vivência que os interessados tenham da situação”.
Para superar a lógica do sistema penal é preciso mudar a linguagem, não que isto baste, mas é necessário. Crime, por exemplo, é vocábulo carregado de forte conteúdo estigmatizante e deveria ser substituído por “acidente” ou “situação problemática”. Partindo do pressuposto de que se devem respeitar as diversidades pessoais, propõe o professor batavo, em substituição ao sistema penal, as regras civis da indenização, muito mais eficazes; as soluções informais de resolução dos conflitos, que, segundo ele, já são utilizadas em larga escala, dado o elevado índice da denominada “cifra oculta da criminalidade”. Para isto, necessário se faz a diminuição da intervenção estatal no conflito. Fundamental a abertura para o consenso.
Arremata Hulsman, que com a abolição do sistema não seriam eliminadas as situações problemáticas, contudo se daria o fim das chaves de interpretação redutoras e das soluções estereotipadas por ele (sistema) impostas, “de cima e de longe, permitiria que, em todos os níveis da vida social, irrompessem milhares de enfoques e soluções que, hoje, mal conseguimos imaginar”.
Thomas Mathiesen, influenciado pelo marxismo, vincula a existência do sistema penal à estrutura produtiva capitalista e segundo Zaffaroni, sua proposta parece pretender não apenas a abolição do sistema penal, mas, também, a extinção de todas as estruturas repressivas da sociedade. Quanto à prisão, afirma Mathiesen sua total irracionalidade em face de seus próprios objetivos estabelecidos.
Os objetivos da prisão, que são utilizados como argumento para o encarceramento, seriam cinco, todos destituídos de racionalidade. O primeiro argumento seria o da reabilitação, que, à luz de tantos estudos já produzidos, é um mito, porquanto, para ele, já foi demonstrado empiricamente que o uso do aprisionamento não reabilita o transgressor. Segundo, a intimidação do indivíduo, ao qual o autor faz idêntica crítica, afirmando que, observados os mesmos estudos, não se conseguiu demonstrar a intimidação do infrator. Terceiro, o argumento da prevenção geral, ou o efeito preventivo da prisão que, consoante pesquisas, é muito modesto ou mesmo mínimo em grupos populacionais os quais se desejaria que fossem fortes - grupos predispostos ao crime e de constantes infratores da lei - enquanto, talvez, seja mais intenso em grupos que por razões outras são de qualquer modo obedientes à lei.
Assevera Mathiesen que a ineficiência preventiva se constitui em um problema de comunicação. A punição seria um modo pelo qual o Estado tenta comunicar mensagens, especialmente para grupos vulneráveis no seio social. Esse método de comunicação seria extremamente tosco. A própria mensagem seria de difícil transmissão, dada a incomensurabilidade da ação e da reação. Para Mathiesen o que surpreende mais não é o efeito mínimo da comunicação do castigo desejando obter a prevenção geral, mas a persistente crença política em tal meio de comunicação primário.
O quarto e o quinto argumentos seriam a interdição dos transgressores e a própria resposta neoclássica da prisão. No que respeita à interdição, muito pouco contribuiria para a diminuição da criminalidade, seus resultados seriam bastante modestos. Pertinente ao último argumento aduz Mathiesen que a prisão não serve de contrapeso para o ato repreensível, equalizando a balança da justiça. Mais decisivo do que a busca pela justiça, segundo ele, é “o vento político”.
A proposição apresentada por Nils Christie possui vários pontos em comum com o abolicionismo de Hulsman. Com efeito, para Christie, o crime não existe, é criado. A rigor, primeiro existem atos, sucedendo, posteriormente, um longo percurso de se atribuir significado a esses atos. Neste processo, a distância social tem importância ímpar, pois dimensiona a tendência de imputar a determinados atos o significado de crime, e às pessoas o simples atributo de criminosas. Esta rotulação estigmatizante encobre os atos humanos considerados decentes, sendo mais difícil de ocorrer em ambientes de condições sociais melhores, como a vida familiar, por exemplo, em face das resistências criadas por tais ambientes a identificar os atos como crimes e as pessoas como criminosas.
Christie atesta deste modo, que o melhor exemplo de solidariedade orgânica é encontrado nas sociedades limitadas, uma vez que seus membros não podem ser substituídos. Nos grandes grupos as condições de solidariedade são restritas e os papéis obrigatórios são substituídos facilmente, através do mercado de trabalho, de forma a tornar os excluídos deste mercado candidatos ideais para o sistema punitivo.
Ao contrário do neo-retribucionismo a proposta abolicionista é descentralizadora, ou seja, não-intervencionista. Busca-se afastar o Estado da resolução dos conflitos interpessoais, remetendo para o corpo social esta responsabilidade, conquanto prevê a adoção de soluções menos repressivas pela sociedade. Sociedade e Estado não devem ser confundidos. Aquela significa os vínculos pessoais do indivíduo, suas relações de trabalho, de vizinhança, de lazer, seus interesses partilhados com os outros: sua igreja, sua rua, seu bairro, sua comunidade. Por que, indaga Hulsman, “deixar ao Estado, poder freqüentemente anônimo e longínquo, o cuidado - exclusivo - com a resolução dos problemas nascidos de nossos contatos mais pessoais? Em geral, pelo menos nos países democráticos, se procura - em nome da liberdade individual - diminuir a ingerência do Estado na vida privada. Todos os movimentos em prol dos direitos do homem querem libertar o indivíduo das dominações e opressões coletivas”.
Para iniciação no pensamento destes autores três livros, já vertidos em língua portuguesa, podem ser consultados:
CHRISTIE, Nils. A Indústria do Controle do Crime, trad. Luís Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
HULSMAN, Louk & DE CELIS, Jacqueline Bernat. Penas Perdidas - O Sistema Penal em Questão, trad. Maria Lúcia Karan. Niterói: Luam, 1993.
MATHIESEN, Thomas. A Caminho do Século XXI – Abolição, um Sonho Impossível? In Conversações Abolicionistas – Uma Crítica do Sistema Penal e da Sociedade Punitiva, Org. Edson Passeti e Roberto B. Dias da Silva. São Paulo: IBCCrim, 1997.