domingo, 7 de fevereiro de 2010

O MAGNAUD DAS ALAGOAS

 Paul MAGNAUD (1848-1926) foi magistrado do Tribunal de Château-Thierry, na França. Tornou-se mundialmente conhecido como “o Bom Juiz Magnaud”. Os seus admiradores reverberam a sua acentuada vocação para a magistratura, retidão e o uso da equidade nos seus julgamentos. Seus detratores afirmam que ele não se guiava pelas leis, que era um panfletário e excedia os limites da função jurisdicional.


 Na academia, nas ruas, nos diversos estratos sociais, no avassalador mundo midiático, que reinventa a própria realidade, parece, de há muito, perene a discussão acerca do bem e do mal. Para além da filosofia do conhecimento, que, de modo apodíctico, nos demonstra a impossibilidade de apreensão do real, os teóricos da linguagem limitam o universo somente às possibilidades das expressões, da comunicação, dos diálogos. Todavia, tal qual fenômeno que funda sua raiz no inconsciente da psique humana – nos diria Freud –, o eterno maniqueísmo, com o qual, dia a dia, nos deparamos, resiste. Esse artigo trata de um personagem que não só acredita no bem e no mal, mas que, em vida, encarnou esse dualismo e, pela sua histórica trajetória, fez uma clara opção.

 Dizem que, nos gabinetes em que trabalhava como juiz e, após, naquele que laborou como desembargador, pairava um quadro com uma citação atribuída por alguns ao alagoano Jaime de Altavilla, porém, na verdade, trata-se de uma variação do fiat justitia et pereat mundus de Ferdinando de Habsburgo: “fique sempre ao lado do direito e da justiça mesmo que o mundo inteiro esteja contra você”, era esse o aforismo. Já o acompanhava, materialmente, a idéia universal do bem contra um mal que – por irracional que pareça –, ainda que contaminasse a todos, teria de ser enfrentado. 

 Nunca acreditei em uma justiça cujo mundo precisa perecer para que seja feita, ou em uma justiça que tem contra si todas as pessoas. Dostoiewski advertia, aliás, que “uma justiça que só é justiça, é uma injustiça”. Mas, não era assim que pensava Antônio Sapucaia da Silva. Quando adentrei no Tribunal de Justiça de Alagoas em sua posse no ano de 2003, percebi que o seu discurso, que contagiava a platéia, se consolidava como se naquele salão estivesse provado um fato: o próprio Tribunal encarnava o mal e sua pena era, enigmaticamente, sua redenção: teria que se reinventar para distribuir só o bem. 

 Antônio Sapucaia, um mestiço que, como a maioria dos brasileiros, encarna bem nossa sociedade híbrida desde o início, incorporou a toga que vestiu com magistrado e fez dela uma arma em sua peregrinação contra aquilo que entendia por mal. Como juiz, sofreu quando condenou poderosos, mas os condenou. As ameaças que lhes foram feitas por “bandidos comuns e engravatados”, não obstante a falta de apoio e solidariedade, não o fizeram abdicar de seus deveres funcionais, mesmo sem ter consigo um batalhão de seguranças tão ao gosto de alguns “destemidos”.

 Em um dos mais marcantes episódios da terra dos marechais, Sapucaia enfrentou figuras tidas por fortes e influentes. Aboletados no Poder Legislativo Estadual, cada qual, segundo informes da imprensa, com uma milícia paga pelos bolsos do sofrido contribuinte, sangraram os cofres públicos, ao que consta nos jornais, em mais de R$: 300.000.000,00 milhões. Essas mesmas fontes apontavam para o suposto envolvimento de alguns com homicídios, roubos e lesões corporais praticados em atividade típica de organização criminosa. Como sói ocorre em solo pátrio, os diversos e infamantes delitos não eram motivo para qualquer temor: blindava-os a imunidade de direito e a imunidade de fato. Entrementes, do outro lado, havia Sapucaia, e sua resistência às blindagens fez dele o responsável por um dos maiores expurgos de deputados estaduais implicados em crimes que se tem notícia no Brasil. Nesta decisão, uma das últimas antes de arrebatar-lhe a compulsória, assinalou, platonicamente, que o veredicto poderia servir, no mínimo, como reflexão para os réus.

 Pena que a imprensa nacional, tão ávida em publicar as mazelas das Alagoas, não tenha tido a devida atenção para o caso, fomentando, como deveria, o debate sobre a malfadada imunidade parlamentar. Tomara que a omissão não tenha sido deliberada pela importância das instituições financeiras, em tese, comprometidas.

 Hoje, a frente do Departamento de Trânsito, o velho senhor empreende, apesar das diversas tentativas de sabotagem, uma série de medidas destinadas à moralização de um dos órgãos mais desacreditados pela população alagoana. Segue, sem parar, na trilha reta que traçou para si.

 As histórias contadas sobre Antônio Sapucaia têm sempre a mesma coloração: honestidade, retidão de caráter, observação aos postulados deontológicos da magistratura. Não há relatos discrepantes, não existem notícias sérias de outras vias percorridas. Há fatos que as palavras reverberam. Poderia objetar-se que suas características não são outras senão aquelas exigidas a qualquer homem público, mas há nelas sim uma ontologia, uma ontologia que ultrapassa a simplicidade teórica, aos deveres do cargo, e confirma-se em um ritual de condutas que servem, sim, de exemplo.

 É possível relativizar para conviver, é correto assinalar caracteres bons e ruins no universo em que se constitui o ser humano, é até imperativo admitir que estejamos condenados a um louco e contraditório mundo e que tudo, certamente, não passa de um mágico instante diante da imensidão do cosmos. Contudo, os Sapucaias são necessários para nos lembrar, ainda que não acreditemos, que as bruxas existem, e, quando vencidas, o mundo pode ser melhor.

Nenhum comentário: