terça-feira, 30 de junho de 2009

AINDA SOBRE O ABORTO


Há mais ou menos dois anos o texto que segue foi escrito para “O Jornal”. Creio que nada mudou com relação ao tema. Mantenho firme minha convicção.

 
Instintivamente considero-o um crime. Ao mesmo tempo sei que essa repulsa corresponde a minha geração. Acho que deve ser legalizado; a razão me diz que sim; o instinto, que não. Diz-se que o aborto destrói a possibilidade de um Shakespeare; também a de um Macbeth.”

Jorge Luis Borges



  Uma das controvérsias mais persistentes nas últimas décadas diz respeito ao aborto, ou ao abortamento, como preferem referir ao ato de abortar alguns autores. Excluindo as concepções religiosas, porquanto estamos em um Estado laico, o principal argumento daqueles que são contrários ao abortamento é de que o feto, desde a fecundação, é um ser humano e, como matar um ser humano é errado, não é justo matar um feto humano. Quatro objeções são colocadas a esse raciocínio pelos que defendem a possibilidade do aborto. A que enfrenta o argumento central, patrocinada pelo professor de Princeton, Peter Singer, vale-se da hipótese que o feto não é ainda um ser humano, mas um ser humano em formação, principalmente porque não é dotado de racionalidade e autoconsciência. Assim, os sérios interesses de uma mulher – um ser humano pleno, autoconsciente e racional –, devem sempre prevalecer sobre os interesses rudimentares do feto.

As outras três objeções não se dirigem contra o argumento central. A primeira é uma argumentação feminista defendida por Judith Thomson a qual reconhece o embrião como um ser humano, entretanto afirma que isso não dá a ele o direito ao uso do corpo de terceiros, mesmo que, sem esse uso, venha a morrer. A segunda parte do princípio de que o tema aborto não é da alçada da lei. Em uma sociedade democrática, heterogênea e plural, é preciso tolerar as concepções morais divergentes quando elas digam respeito à esfera privada de cada um. A lei não pode reger questões restritas ao âmbito do indivíduo e, assim, ficaria ao alvedrio da interessada a decisão de abortar.

A terceira e última argumentação toma por base, fundada em dados empíricos, uma assertiva que me parece incontestável: as leis que proíbem o abortamento, ao invés de inibirem, aumentam sua prática. Em um importante estudo na Stanford Law School (acesse aqui o estudo), John Donohue e Steven Levitt comprovam que, nos Estados americanos onde o aborto é proibido, há mais abortos que nos Estados americanos onde ele é permitido, o que coincide, inclusive, com a experiência alemã pós-lei permissiva do abortamento. Dados da Organização Mundial da Saúde indicam que, no Brasil, há mais de um milhão de abortamentos por ano, deixando patente a inadequação das leis criminalizadoras para resolver o problema.

É comum o desespero das mulheres que desejam fazer um aborto. A proibição as leva a procura de aborteiros, clínicas clandestinas, remédios sem receita, não havendo, pois, apoio nem orientação do Estado. As conseqüências são desastrosas com sérias complicações para a saúde e não raro a morte da mulher. A resposta penal, nesse caso, é contraproducente, nem inibe o comportamento tido por delituoso, muito menos castiga ou recupera as pessoas envolvidas, mesmo porque os processos de aborto são raríssimos no Sistema de Justiça Criminal dos países ocidentais.

Parece que a melhor resposta é a legalização racional e responsável do abortamento voluntário, com a necessidade de autorização administrativa para abortar. A mulher que deseja o aborto deve, obrigatoriamente, consultar um médico, que lhe explicará os efeitos clínicos do procedimento e as conseqüências, presentes e futuras, para o seu corpo; um psicólogo, que lhe revelará os efeitos para sua mente; um assistente social, que poderá convencê-la a manter a gravidez, mostrando o caminho da família substituta. Ao cabo de um processo que prima pela assistência, é natural que muitas mulheres desistam de abortar o que explica um maior número de abortos nos Estados que o proíbem. As que, ainda assim, insistem no aborto têm proteção assegurada à sua saúde e à sua vida.

Diante deste último argumento, que também não enfrenta a tese de que o feto é um ser humano e, portanto, é errado matar um feto humano, o desfecho para questão da justiça no abortamento pode ser buscado na percuciente afirmação de Dostoiévski: “uma justiça que só é justiça é uma injustiça”.

domingo, 14 de junho de 2009

A EXPLICAÇÃO (?) DO CRIME NAS SOCIEDADES ATUAIS (I)

No passado, a concepção mecanicista que até hoje prepondera nas camadas leigas e é, ainda, difundida pela mídia encarregada dos programas policialescos, acreditava que o crime tinha uma causa ou origem determinada. O criminoso era tido por anormal, com problemas atávicos, mentais e/ou psicológicos. Do degenerado lombrosiano, ao neurótico freudiano, o delinqüente carregava, dentro de si, a mola propulsora do crime. Mesmo para as concepções que não o consideravam um estranho, o delito era responsabilidade exclusiva sua, pois, tendo a opção de discernir entre o “bem” e o “mal”, optava pelo último.

A sociologia, ao se interessar pelo crime, logrou maior amplitude de visão sobre o fenômeno. Foi o sociólogo francês Émile Durkheim quem, pela primeira vez, afirmou o delito, desde que não ultrapasse certos níveis, como algo “normal” no funcionamento de toda e qualquer sociedade. O crime, segundo ele, tanto se prestava a revelar novos valores e o abandono dos velhos que não tinham mais espaço no corpo coletivo, representando uma evolução social, como se prestava a reforçar os valores mais densos da sociedade. A punição representa, nesse modelo, um estímulo para os que acreditam nos valores, sinalizando que vale a pena continuar cumprindo-os, estabilizando, destarte, as expectativas sociais.

É claro que essas considerações não impediram Durkheim de perceber problemas biológicos ou psicológicos em certos comportamentos, mas ele afirmava, com percuciência, que “não há ato algum que seja, em si mesmo, um crime. Por mais graves que sejam os danos que ele possa causar, o seu autor só será considerado criminoso se a opinião comum da respectiva sociedade o considerar como tal”. O sociólogo francês percebeu que o delito é algo fabricado pelo próprio estado e que a maior parte das pessoas que o cometem, se têm disfunções biológicas ou psicológicas, têm como qualquer um de nós, tidos por “normais”.

Um dos mais importantes legados de Durkheim, com prestígio até nossos dias, foi sua teoria da anomia. Em um trabalho famoso – “O Suicídio” –, Durkheim notou que em épocas de transformações sociais e econômicas abruptas, a ação reguladora da sociedade não pode ser exercida de modo eficaz e, conseqüentemente, não assegura ao indivíduo um conjunto normativo conciliável com seus anseios. E “se a influência reguladora da sociedade deixa de se exercer, o indivíduo perde a capacidade de encontrar em si próprio razões para se auto-impor limites”. Uma situação de desregramento, que projeta o indivíduo num mundo sem referências, portanto, caracteriza-se como uma situação anômica. O crime, nestas circunstâncias, perderia sua “normalidade” e revelaria um quadro de disfuncionalidade social.

A teoria da anomia, para além de permitir uma verificação das disfunções havidas nas sociedades, proporcionou desenvolvimentos ulteriores – principalmente a partir de Merton –, que tencionam explicar o crime em face da defasagem existente entre os objetivos culturais – as aspirações, induzidas socialmente, que têm a maioria das pessoas –, e as oportunidades reais – o que, de fato, possuem as pessoas para poderem realizar aquelas aspirações. Ademais, contribuiu para a percepção da criminalidade dos poderosos, explicada pelas relações sociais de aprendizado e internalização do poder sobre as regras e não sob as regras.

Os estudos criminológicos modernos são convergentes em apontar fatores e não mais causa do crime. Diferentemente da causa, relacionada com uma origem mecânica para o delito a indicar uma motivação decisiva para este, os fatores são sempre plurais e apontam para múltiplas conexões que não podem, senão, permitir compreender o fenômeno criminoso, dificilmente explicá-lo. Parece inquestionável, contudo, que a atomização dos valores tradicionais, sempre transportados pela elite, mais traídos por ela própria, evidencia uma pista para entender tantos e tão diferentes delitos na nossa sociedade criminógena.