Escreveu Canotilho, um dos mais célebres constitucionalistas luso-brasileiros do nosso tempo, que, na modernidade, a balança da justiça já não tem mais dois pratos, pois é digital e digitaliza em termos reais interesses múltiplos e múltiplos interesses. O conceito platônico de justiça como um paradigma, como algo definitivo já não encontra ressonância em um meio social marcado pela complexidade, com valores díspares e antagônicos. Estamos vivenciando o mundo transgênico, heterogêneo, plural. O monismo morreu e com ele a inferência, carregada de platonismo, de que devemos ficar sempre ao lado do Direito e da Justiça mesmo que o mundo inteiro esteja contra. Afinal, que diabos de Justiça e de Direito são estes que contrariam todo um mundo? Que iluminado ou semideus os detém?
Mas, se já não é possível uma justiça ideal é possível fazer justiça? Para além dos clichês, das figuras de retórica, tão ao gosto do messianismo dos nossos tempos, acredito, como muitos, nas pautas em torno das quais temos certo consenso. No entanto, é indiscutível, como damos a elas interpretações variadas. O ser humano, consoante Nietzsche, está destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é a sua interpretação.
Não há, à parte os que já cederam à cretinice, quem não concorde, por exemplo, que os processos devam ser tratados com esmero, que os magistrados sejam probos, que atuem com rapidez. No entanto, só neste pequeno trecho podemos colocar, problematizando: rapidez e esmero são compatíveis? Em qual situação? Em que medida? Com quais condições? Qual o esquadro comensura a honestidade? De que honestidade falar? Da que aparece na opinião pública ou nas opiniões publicadas? Será que somos honestos conosco ou escondemos para debaixo dos travesseiros os mais pecaminosos delírios que até Freud coraria diante deles?
Então, o que resta àqueles que acreditam? Àqueles que cheios de emoções gritam, ainda que internamente, seja lá por quais motivos, para que prevaleça o que lhes parece correto? Resta o caminho que se faz caminho por caminhar.
Na caminhada descobre-se como remover os obstáculos: dialoga-se, buscando sempre o consenso possível na oxigenação dos contrários. Irredutibilidade somente quanto à dignidade de todos.
No mundo físico, segundo os estudos do Nobel Ilya Prigogine, existem dois tipos básicos de estrutura: a “estrutura de equilíbrio”, de que se tem exemplo o arranjo molecular de cristais. Este somente pode persistir como sistema isolado. O outro tipo chama-se “estrutura dissipativa”, que apenas subsiste em conexão com o ambiente – como os padrões de convecção que se formam num líquido e desaparecem quando a fonte de calor é retirada.
A justiça e o direito, permitida a adaptação, são “estruturas dissipativas”. Existem apenas em conexão com o nosso meio, com as nossas construções ou, para ser fiel ao texto, com a nossa caminhada. E ao contrário do que possa parecer aos mais apressados, tal conclusão não pretende legitimar o comportamento dos patifes, que não podem ficar impunes, mas evitar o fundamentalismo. Todos os regimes de força, toda a opressão, tiveram por esteio uma fé inquebrantável, uma crença em valores absolutos. Stalin dizimou milhões de camponeses pelas aspirações do que entendia por igualdade; Robespierre, em nome da liberdade, um dos ideais clássicos da Revolução Francesa, levou à guilhotina seus próprios companheiros; os inquisidores cristãos queimaram, valendo-se da fé que diziam ter em Deus, milhares de pessoas.
Concluir pela inexistência de valores absolutos não é, definitivamente, uma atitude pessimista e cômoda. Representa, em verdade, a possibilidade de convivência com as diferenças, a aceitação do alter, a abertura para construção contínua do novo. E já que o novo é irreversível, rejeitar os valores absolutos implica, ao menos, a possibilidade de uma caminhada melhor nas sendas que, incessantemente, aparecem ao ser humano.
9 comentários:
Brilhantíssimo texto, caro professor! Se interiorizarmos essa mensagem frustar-nos-emos bem menos com a realidade social, que está longe dos idílicos axiomas do Direito.
Grande, estarei sempre por aqui. Abraços!
Parabéns pela iniciativa, professor! O pluralismo e a necessidade de tolerância quanto ao Outro, mais do que desejáveis, configuram necessidades históricas de nosso tempo. Sem tais elementos, só verificaremos o aprofundamento do atual panorama sócio-histórico, onde grassam as idéias monológicas, unidimensionais e as práticas autoritárias e violentas.
QUANDO FIZERES O QUE ESTÁ ESCRITO, NÃO PERQUIRIRÁS MAIS, SOBRE O CERTO E O ERRADO, SOBRE O QUE É O NÃO JUSTIÇA. ACONSELHO MEDITAR NOS TEXTOS BÍBLICOS OS QUAIS COLACIONO PARA MEDITAÇÃO DO AMIGO MAGISTRADO:
"Conforme ao mandado da lei que te ensinarem, e conforme ao juízo que te disserem, farás; da palavra que te anunciarem te não desviarás, nem para a direita nem para a esquerda."
DEUTERONÔMIO 17 : 11
"Não discriminareis as pessoas em juízo; ouvireis assim o pequeno como o grande; não temereis a face de ninguém, porque o juízo é de Deus; porém a causa que vos for difícil fareis vir a mim, e eu a ouvirei."
DEUTERONÔMIO 1 : 17
" Juízes e oficiais porás em todas as tuas cidades que o SENHOR teu Deus te der entre as tuas tribos, para que julguem o povo com juízo de justiça."
DEUTERONÔMIO 16 : 18
A VERDADEIRA JUSTIÇA VEM DE DEUS, AO HOMEM, INCUMBE REALIZA-LA, POIS QUE, ELE INSTITUIU E INVESTIU OS MESMO NA CONDIÇÃO DE AUTORIDADE PARA SERVÍ-LO AINDA COM AS LEIS HUMANAS.
ERIVALDO TARGINO BARRETO FILHO
ADVOGADO OAB/AL Nº 3.388
Caro Dr. Alberto Jorge, blog tão importante não poderia deixar de ter um link no nosso modesto site - www.tudodireito.com.br
Receba os parabéns deste seu ex-aluno e agora advogado - aprovado no último Exame da Ordem.
Claudemir Araújo
Estimado Targino,
o problema persiste: qual é a verdade? O que está escrito? Quem escreveu? Deus é uma resposta de fé ou crença, variável, portanto, sob o ponto de vista de cada religião, de cada Deus, condicionada a formação cultural de cada pessoa. Mesmo os textos bíblicos, dos quais muitos se acham detentores do conhecimento definitivo (pense na interpretação canônica, por exemplo), são submetidos ao crivo da interpretação. Aliás, o problema da interpretação começa exatamente em razão dos textos do velho testamento. A primeira forma de interpretação foi a interpretação midrástica – uma espécie de exegese bíblica. A segunda foi a interpretação alegórica, em que a construção dos significados passa, para além do que está escrito, pela (re)criação do intérprete. Jesus, por exemplo, usou largamente a interpretação alegórica. Marcos nos conta (2:27) que os discípulos colhiam trigo em pleno dia de sábado, dia sagrado e consagrado somente ao Senhor (Deuteronômio 5:12), quando os fariseus os acusaram de não guardar o dia de louvor a Deus, tendo Jesus respondido a eles: “o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado”.
Boa reflexão, Professor Alberto Jorge. Particularmente interessante o cheque em que se encontra a absolutização da verdade e o quanto uma suposta certeza sobre um determinado tema se encaminha para a criação de situações onde vários dos valores (con)sagrados na história humana terminam sendo sacrificados por quem a detém num nível pretensiosamente infalível. Pela verdade que dá conta de todas as perguntas, mata-se e morre-se.
A crítica ao monismo filosófico é pertinente. Inevitável, ao ler este texto inaugural do blog, não pensar em Isaiah Berlin, filósofo letão, radicado em Oxford, falecido em 1997, e sua advocacia pelo pluralismo das idéias. Berlin é o proferidor da famosa aula de Oxford, divisora de águas na filosofia política do século XX, ocorrida na década de 50, "Dois Conceitos de liberdade, que depois se tornou um ensaio fundamental na compreensão do valor liberdade nas relações políticas e sociais.
Caro professor Alberto Jorge,
As convicções são cárceres... Maiores inimigas da verdade do que a própria mentira. Assim falou Nietzsche, e deste modo o subscrevo acreditando que uma vida traçada por ideologias tão conservadoras não serve como garantia de realização e/ou satisfação pessoal.
Gostei da leitura, estarei sempre por aqui.
Abraços!
Romper o ciclo com a religião, em um primeiro momento já é louvável, a classe marginalizada ao sair do entorpecimento e quebrar o ciclo da exploração, segundo Marx, rejeita a felicidade ilusória oferecida pela religião.
Hodiernamente há um dilema existencial e entre a efetividade da coerção estatal e a proteção aos Direitos Fundamentais, será que para que haja a efetividade daquele é necessário a limitação deste?
Ou seria melhor procurar um ponto de equilíbrio?
Galeno o iminente uruguaio já exponha que a sociedade de consumo nos impõe sua simbologia do poder e sua mitologia da ascensão social. estamos informado de tudo mas não sabemos de nada.
Givaldo 5º UFAL
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