UMA INTRODUÇÃO À PARTE ESPECIAL DO CÓDIGO PENAL[1]
Sumário: 1. A Parte Especial do Código Penal. 2. A classificação dos crimes na Parte
Especial. 3. Do Tipo: Conceito e dimensão constitucional. 4. Conceito e funções. 5. Estrutura. 5.1.
Tipo de Injusto Doloso. 5.2. Tipo de Injusto Culposo. 6. Do Preterdolo. 7. O
Conflito Aparente de Normais Penais: colocação do problema. 8. Pressupostos do
Conflito. 9. Os Critérios para solução. 10.
Critério da Especialidade. 11. Critério da Subsidiariedade. 12. Critério da Consunção.
13. Critério da alternatividade. 14. Hierarquia dos critérios.
1.
A Parte
Especial do Código Penal
O Código Penal (CP) como se sabe
possui duas partes, a Parte Geral (PG) e a Parte Especial (PE). A primeira estendendo-se
do artigo 1º ao artigo 120 e a segunda do artigo 121 ao artigo 361. As partes
são (podem ser) divididas em títulos, capítulos, sessões, artigos, parágrafos,
itens (incisos) e alíneas. A Parte Geral foi completamente modificada em 1984,
pela reforma introduzida com a Lei 7.209 de 11.7.1984 e sucessivas outras
modificações. A Parte Especial, embora menos propensa a modificações,
especialmente quanto aos delitos clássicos (v.g. homicídio, roubo) sofreu
inúmeras mudanças, de modo que podemos afirmar que este não é um Código de
1940, todavia uma codificação bem mais nova.
A necessidade de uma codificação
é questão controversa na doutrina. Para uns, nas sociedades complexas atuais, o
melhor caminho seria os dos microssistemas, notadamente por conta das
especificidades tão comuns no nosso tempo. Para outros, entretanto, a
codificação, especialmente em matéria penal, fornece mais coesão dogmática e
permite maior segurança aos súditos. No Brasil, não obstante os vários
microssistemas (v.g. crimes ambientais, crimes de trânsito) optamos por reunir
no Código Penal, para além das regras gerais aplicadas a todo e qualquer crime –
embora respeitado o princípio da especialidade –, os crimes clássicos.
Entrementes, tramita no Congresso Nacional o PL 236, do Senado Federal, que pretende reunir, napoleonicamente, no Novo Código Penal toda
a legislação extravagante que, desde 1940, foi sendo editada no Brasil.
A Parte Especial do
nosso Código compreende todas as normas
incriminadoras existentes no CP. As normas incriminadoras como se sabe, são
aquelas que definem o crime e estabelecem a respectiva sanção. Sua estrutura,
assim, é bimembre, composta, sempre, de um preceito, ou preceito primário e a
sanção, preceito secundário ou pena. Mas a PE não se esgota nas normas
incriminadoras, há nela, também, normas penais não-incriminadoras que servem
para interpretação, compreensão, sistematização ou aplicação de norma
incriminadora específica ou de um conjunto delas encartado num capítulo, sessão
ou título da Parte Especial. Se a Parte Geral é importante por estabelecer
regulações para as normas incriminadoras, a Parte Especial é fundamental por
impor um limite ao Direito Penal firmando quais são os comportamentos
criminosos.
Bruno, com sua
habitual proficiência, nos ensina que a Parte Especial é responsável por: i) fixar
os principais valores que merecem proteção penal em dado momento histórico; ii)
definir da maneira mais precisa possível a conduta passível de punição por
ofensa àqueles valores; iii) estabelecer a quantidade e a qualidade da sanção
penal; iv) classificar e ordenar os crimes[2].
2.
A classificação
dos crimes na Parte Especial
O sistema de classificação de
crimes na PE segue o parâmetro da objetividade jurídica. Seguindo esse critério
o Código leva em conta nos seus títulos e capítulos da PE o bem jurídico
ofendido pelo crime. Embora controversa a questão acerca da ofensa a bem jurídicos
juridicamente tutelados pelo Estado, essa nos parece a melhor opção para o
disciplinamento dos vários tipos incriminadores no Código Penal. Diga-se que a
mesma trilha é, também, seguida pela legislação extravagante e pela Lei das Contravenções Penais (contravenções
referentes à pessoa, ao patrimônio, à incolumidade pública, à paz pública, à fé
pública, à organização do trabalho, aos costumes, à Administração Pública)[3].
É evidente que uma disposição de
crimes na PE segundo o bem jurídico atingido traz alguns problemas como, por
exemplo, no caso de delitos que ofendem dois ou mais bens jurídicos, em que
capítulo deveria ser elencado? Não há dúvidas de que, neste caso, deve-se ter
em conta a preponderância do bem. Ainda assim, há entre nós, delitos como o
latrocínio (roubo qualificado pelo resultado morte) que continua a figurar
entre os crimes contra o patrimônio, quando, fosse levada em conta o critério
da preponderância, deveria restar descrito entre as qualificadoras do homicídio
(homicídio qualificado pela conexão teleológica ou consequencial).
A Parte Especial, levando em
conta, pois, a objetividade jurídica, classificou os crimes em i) crimes contra
a pessoa (Título I); ii) crimes contra o patrimônio (Título II); iii) crimes
contra a propriedade imaterial (Título III); iv) crimes contra a organização do
trabalho (Titulo IV); v) crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos
mortos (Título V); vi) crimes contra a dignidade sexual (Título VI); vii)
crimes contra a família (Título VII); viii) crimes contra a incolumidade
pública (Título VIII); ix) crimes contra a paz pública (Título IX); x) crimes contra a fé publica (Título X) e,
finalmente, xi) crimes contra a
administração pública (Título XI).
Heleno Cláudio Fragoso[4],
em passagem clássica na literatura jurídica penal do Brasil, resumiu todo este
conjunto de crimes na seguinte classificação: i) crimes contra bens e interesses da personalidade; ii) crimes contra bens e interesses do corpo
social e, iii) crimes contra o
Estado.
O bem jurídico, portanto, que não é outra
coisa senão tudo aquilo que os seres humanos, isolado ou coletivamente, podem
dispor, usar, gozar, fruir e tem seu reconhecimento pelo direito positivo,
fruto dos juízos de valor feitos pela humanidade na sua marcha histórica, é
fundamental não só para classificação, mas para interpretação e aplicação das
normas penais, inclusive em sua dimensão constitucional. Firmava Welzel[5] que a missão do Direito Penal não é outra
senão “amparar os valores elementares da vida da comunidade”, porquanto não
vivemos sozinhos, nós convivemos.
Vinculado ao conceito de bem
jurídico está o conceito de tipo penal, chegando alguns a afirmar que o
primeiro é a razão de ser do segundo. Para entender melhor a norma penal
incriminadora e, portanto, a essência da Parte Especial é fundamental o estudo
do tipo e, ainda, um olhar atento sobre o conflito aparente de normas. É o que
faremos a seguir.
3.
Do tipo: conceito
e dimensão constitucional.
O tipo objetivo é a descrição jurídica abstrata, o texto que descreve a
conduta, ou o enunciado sobre a norma imperativa elíptica que expressa os
elementos do comportamento ditado por ela, é, em síntese, a descrição do comportamento proibido. Difere, pois, de tipicidade
que “é a qualidade que se atribui a um comportamento, quando é subsumível a
hipótese de fato de uma norma penal”[6].
O tipo pertence à lei enquanto a tipicidade pertence à conduta. Tipo é a
fórmula legal que permite averiguar a tipicidade da conduta”[7].
No
Brasil, o tipo ganhou dimensão de garantia constitucional com o disposto no
art. 5º, XXXIX: "não há crime sem lei anterior que o defina...", agasalhando a Carta de 1988, através da do
princípio da legalidade, o corolário da taxatividade
(= menor imprecisão possível na construção do texto do tipo de injusto).
4.
Conceito
e funções.
Foi de fundamental importância
para o Direito Penal a evolução do tipo. Ele
tornou-se uma garantia, assegurada a todos, de que a persecução penal, a
cargo do Estado, só poderia vingar naqueles comportamentos definidos
estritamente em lei criminalizadora. O tipo é, assim, decisivo para verificação do ilícito penal.
Só há ilícito penal se houver tipo descrevendo o comportamento proibido.
Deve-se ao alemão Beling
a noção de tipo como um dos elementos estruturais do conceito de infração
penal. Inicialmente, foi o tipo percebido por ele como pura descrição
objetiva. Após, operou-se uma mudança do
conceito, observando-se no tipo uma dupla ordem de valoração. A primeira
compõe-se no juízo de desvalor social,
originário da própria feitura deste. A segunda situa-se no peso valorativo encontrado, que permite ao tipo desempenhar função
seletiva sobre as mais diversas formas de conduta humana, estabelecendo
garantia aos cidadãos quando delimita o que é e o que não é permitido no
Direito Penal. Além da função
selecionadora dos comportamentos humanos penalmente relevantes e da função de
garantia, o tipo desempenha ainda uma função preventiva geral, porquanto,
quando o legislador indica as pessoas quais as condutas proibidas, espera que,
com a cominação das penas, elas abstenham-se de realizar tais condutas.
Os alemães denominaram de tatbestand[8]
o que em língua portuguesa traduz-se para tipicidade ou tipo. Já os italianos
utilizam a expressão fattispecie, o
que significa espécie de fato. A doutrina, majoritariamente, entende tipicidade
como indício da ilicitude[9].
O tipo divide-se em tipo de injusto (do qual aqui trataremos) e tipo permissivo.
5. Estrutura
O tipo de injusto, aquele
que descreve o comportamento, de regra, proibido, divide-se em:
a) tipo
de injusto doloso e
b) tipo
de injusto culposo.
5.1. Tipo
de injusto doloso
O tipo de injusto doloso
divide-se em:
a)
tipo objetivo;
b)
tipo subjetivo.
O primeiro é composto de um núcleo (representado por um verbo – um
fazer {ação}, ou um não fazer {omissão}) – e de elementos complementares de natureza descritiva e normativa.
O tipo carece descrever
com o máximo de clareza e o mínimo e
imprecisão possível o comportamento proibido, por força, como já visto, do
imperativo do princípio da legalidade na sua função de taxatividade. O texto
deve pautar-se em linguagem acessível ao nível cultural médio. Recomenda-se
cautela na utilização dos chamados elementos normativos (v.g. “função
pública”, “indevidamente”, “insolvência”, “credor”, etc), os quais implicam sempre uma valoração e, por isso, certo
grau de subjetivismo, preferindo-se os elementos
descritivos (“lesões”, “danos”, “matar”, “coisa”, “alguém”, “filho”, etc),
pois qualquer pessoa pode conhecer seu significado sem maiores problemas.
O mesmo delito, por
vezes, manifesta-se acrescido de uma particularidade que pode aumentar ou
diminuir a pena básica. Por exemplo, o
furto quando praticado durante o repouso
noturno (vide CP, art. 155, § 1º) é tido como (i) tipo qualificado em relação ao (ii) tipo básico (CP, art. 155) e quando o agente é primário e é de
pequeno valor a res (CP, art. 155, §
2º) temos o chamado (iii) tipo
privilegiado. Tanto o tipo qualificado como o privilegiado são derivações
do tipo básico, aplicando-lhes a mesma regra. Todavia, por vezes, a
particularidade é tão marcante que o legislador converte tipo básico em outro,
considerado assim (iv) tipo autônomo
em relação ao primeiro, é o caso do delito e furto de coisa comum (CP, art.
156) e do homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2º), por exemplo.
Os tipos qualificados ou privilegiados, por serem
derivações, não modificam os elementos fundamentais do tipo básico. Já os tipos
autônomos, constituem, “ao contrário, uma
estrutura jurídica unitária, com um conteúdo e âmbito de aplicação próprios,
com medida penal autônoma”[10].
O
tipo subjetivo, diferentemente do objetivo, é de comprovação mais
difícil, vez que repousa na psique do agente. O tipo subjetivo no delito
doloso, como evidente, é o dolo, o
qual, modernamente, é levado em conta a partir da conduta (teoria da ação
finalista).
Dolo é a vontade (animus)
incondicionada de realizar o tipo objetivo de um delito. Comporta, assim, os
seguintes elementos:
a) O
elemento intelectivo ou cognitivo – é o conhecimento pelo agente dos elementos
que caracterizam sua ação como típica. Este conhecimento há de ser atual e,
claro, profano;
b) O
elemento volitivo – é a vontade do agente em querer realizar a ação típica.
c) A
conduta comissiva ou omissiva.
O dolo não se confunde com desejo. No dolo o agente põe em curso uma conduta potencial
(mais ou menos dominável, capaz) para realização do tipo, enquanto no desejo o
curso dos acontecimentos não é passível de controle pelo agente.
São espécies de dolo:
a) Dolo
direto – aquele em que o agente quer realizar precisamente (diretamente) o
resultado proibido no tipo penal (delitos de resultado naturalístico) ou a ação
típica (delitos formais). (Teoria da vontade);
b) Dolo
eventual - nos passos da teoria do
consentimento, é a vontade que, embora não dirigida diretamente a
realização do tipo objetivo de um crime,
previsto como provável, consente no advento deste, vale dizer, assume o risco
de produzi-lo.
Costuma-se classificar o dolo em:
{ Direto - Art. 18, I
Dolo:
{ Indireto: [ eventual -
Art. 18, I, última parte.
[ alternativo - Quando o
objetivo da conduta se divide em
dois ou mais
resultados, indiferentes ao sujeito ativo. Ex: matar ou lesionar. No dolo
eventual o agente fica entre realizar ou não realizar um fato típico.
As seguintes classificações, embora procedidas por diversos
autores, não encontram mais significação em face da teoria da ação finalista.
São elas:
Dolo de Dano – Quando o agente quer ou assume o risco de
produzir efetivamente o dano (prejuízo material ou imaterial).
Dolo de Perigo – Quando a conduta orienta-se tão só para a
criação de um perigo (risco de dano), perigo este que constitui o resultado
previsto na lei. Ex.: CP, art. 130 (crime de perigo de contágio venéreo).
Dolo Genérico –
Quando o agente deseja apenas o fato descrito na norma penal em seu núcleo. Ex.: Lesionar alguém, CP, art. 129,
caput.
Dolo Específico –
Quando o agente quer realizar o fato com uma finalidade especial. Ex.: CP, art.
249 e art. 220.
Afirme-se que a pena,
em abstrato, é a mesma para qualquer
espécie de dolo.
Sobre o conteúdo do
Dolo é possível listar três teorias:
a)
Teoria
Psicológica: para a existência do dolo basta que o autor represente e
deseje o evento punido pela Lei.
b)
Teoria Normativa:
além da vontade ou do consentimento, comporta o dolo a consciência da
ilicitude, ou seja, consciência de que se age contrariamente ao direito.
c)
Teoria Normativa
Pura (adotada pelos finalistas e entre nós): comporta o dolo somente a
vontade ou o consentimento quanto ao resultado, a consciência da ilicitude é
analisada separadamente quando da decomposição da "culpabilidade".
É preciso não esquecer que para a concepção causal, hoje
superada, o dolo e também a culpa pertenciam a culpabilidade. A consciência potencial da ilicitude era parte
integrante do dolo.
Para a concepção finalista o dolo pertence ao tipo e a consciência da ilicitude
(destacada do dolo) é elemento da culpabilidade,
entendida como juízo de reprovação (censura) da conduta e último elemento do conceito analítico de crime. Tal concepção é largamente aceita entre nós.
5.2. Tipo de injusto
culposo
O tipo de injusto do
delito culposo é aberto, não existe, pois, tipo
objetivo do delito culposo, assentando-se este tão somente na ausência do
dever objetivo de cuidado que todo devemos ter, bem por isso são incalculáveis
o número de comportamentos que possam resultar na quebra deste dever, assim
seria impossível ao legislador quantificar, descrevendo-as objetivamente, as
condutas culposas. Desta forma existe tão somente no tipo de injusto do delito
culposo o tipo subjetivo.
A culpa é exceção no Direito Penal. Em
regra todos os crimes são dolosos, somente admite-se o crime culposo se houver
previsão expressa. É que a realização culposa dos elementos objetivos
dos delitos não deve ser punida sempre. O princípio
da intervenção mínima impõe aqui uma dupla restrição, de um lado obrigando
a seleção de determinados comportamentos culposos que afetem bens jurídicos
fundamentais (vida, integridade física e psíquica, etc), de outro, punindo
apenas os comportamentos que chegam efetivamente a produzir um resultado lesivo
àqueles determinados bens jurídicos[11].
São elementos da culpa:
i) Quebra do dever objetivo de cuidado
(por negligência, imprudência ou imperícia) através de uma conduta voluntária; ii) Resultado prognosticado em Lei (previsto {culpa consciente} ou não previsto {culpa inconsciente}
pelo agente); iii) nexo causal entre a conduta e o resultado; iv) ausência de
intenção ou/e aceitação do resultado.
Da conduta voluntária decorrem
as seguintes modalidades da culpa:
a) A negligência, que significa desleixo,
incúria, desatenção e pode ser conceituada como a falta de precaução ou
descuido em relação ao comportamento que deveria ser realizado. O agente não faz o que deveria (com
cautela normal) fazer, por exemplo, não troca os pneus gastos do veículo, acontecendo
a má frenagem com o atropelamento e morte de um pedestre. A negligência é caracterizada por uma conduta
negativa.
b) A imprudência, caracterizada
pela prática de uma conduta positiva. Aqui o agente faz quando não deveria
fazer. Aumenta, por exemplo, a velocidade do veículo em vias incompatíveis com
o excesso de velocidade, atropelando e ferindo um transeunte.
c) A imperícia, que se diferenciando
das modalidades anteriores, é a
ausência de aptidão para o exercício profissional, ou como bem definiu Hungria,
“é a inobservância, por despreparo prático ou insuficiência de conhecimentos
técnicos, das cautelas específicas no exercício de uma arte, ofício ou
profissão"[12].
Imperito é o cirurgião que durante a cirurgia corta um vaso sangüíneo de grosso
calibre no paciente por inaptidão, quando no caso, deveria estar capacitado
para fazer o que estava fazendo.
Pouco importa, em verdade, qual
modalidade da culpa, basta que fique provada a quebra de um dever objetivo de
cuidado e os demais requisitos. Na Espanha, por exemplo, não se reporta mais a
essas modalidades, chama-se negligência qualquer delas.
6. Do Preterdolo
O delito diz-se ainda
preterdoloso ou preterintencional quando, necessariamente, a conduta inicial do agente é praticada a
título de dolo, sobrevindo em decorrência dela, resultado mais grave daquele
pretendido por ele, imputado este resultado a título de culpa. Assim é correto
afirmar que o preterdolo é um misto de dolo e culpa, dolo pela conduta inicial
e culpa pelo resultado, não pretendido, que agrava especialmente a pena. O
agente pretendia menos e ocorreu um plus,
que lhe é imputado a título de culpa
stricto sensu. São exemplos de delitos preterdolosos a lesão corporal seguida
de morte (CP, art. 129, § 3º) e o abortamento qualificado (CP, art. 127).
7.
O conflito aparente de norma penais: colocação do problema
A questão do chamado Conflito Aparente de Normas não é outra
senão a do estabelecimento de critérios para a correta aplicação das normas
penais ou, por outras palavras, de se saber, dogmaticamente, que norma aplicar
a espécie.
O
Ordenamento Jurídico constitui-se em um sistema e, como tal,
pressupõe-se harmônico, coerente, não existindo conflito
(antinomia) entre suas partes. A palavra sistema já implica em harmonia, em certa
ordem[13]. O Ordenamento é um sistema aberto composto de
princípios e regras que denominamos de Normas Jurídicas.
De
imediato podemos dizer que a doutrina positivista formulou, para o Direito em
geral, três critérios para a solução de conflitos no sistema: O critério
cronológico (lex posterior derogat priori), o critério
hierárquico (lex superior derogat inferiori) e o critério da
especialidade (lex specialis derogat generali)[14].
No Direito Penal especificamente, já sabemos, há Normas
Princípios e Normas Regras. As Normas Penais Principiológicas são sempre Normas
Não-Incriminadoras, enquanto as Normas Penais Regras podem dividir-se em Normas
Penais Não-Incriminadoras e Normas Penais Incriminadoras. Todas estas normas
são também harmônicas entre si. É possível, no entanto, em certos casos, parecer
haver para determinado fato, a incidência de duas ou mais normas penais,
quando, na verdade, somente uma delas é aplicável. Quando isso ocorre, vamos
nos valer, no Direito Penal, dos mesmos critérios acima abordados, além de
outros que repercutirão, especialmente, nas Normas Incriminadoras.
A nomenclatura empregada para o tema proposto
consiste na locução “conflito aparente”, em razão da oposição que se faz com o
chamado “conflito real”, expressão que, para alguns, é sinônima de antinomia. O
conflito diz-se aparente porque só seria real (antinomia) se a ordem jurídica não estabelecesse critérios
para sua resolução. Este tema, portanto, relaciona-se com os critérios
dogmáticos previstos pelo próprio ordenamento e com sua utilização,
repercutindo nas lições dos penalistas brasileiros, quase que somente, em
relação às normas penais incriminadoras.
8.
Pressupostos do conflito
Os autores nacionais e estrangeiros concordam que só
ocorre o conflito aparente de normas,
salvo raras exceções, quando os seguintes pressupostos estão patenteados:
i.
unidade de fato e
ii.
pluralidade, aparente, de normas incriminadoras em vigor, identificando o mesmo fato como delituoso.
9.
Os Critérios para solução
Considerando os pressupostos acima estabelecidos,
máxime tendo em conta que as normas “aparentemente em conflito” estão em vigor,
ou seja que não foram revogadas por norma posterior, tampouco conflitam com
normas superiores, sobretudo normas constitucionais, podemos destacar quatro
critérios para o remate do problema, são eles: i) Especialidade; ii) Subsidiariedade;
iii) Consunção e iv) Alternatividade.
10.
Critério da especialidade
É especial uma norma penal em relação à outra (chamada geral), quando ela
reúne todos os elementos desta última, acrescido de mais algum, chamado
especializante (art. 12 do Código Penal). Nas normas incriminadoras toda ação
que realiza o tipo objetivo (= preceito, preceito primário, texto) do delito
especial realiza necessariamente, ao mesmo tempo, o tipo do geral, enquanto o
contrário não é verdadeiro.
Tome-se, como exemplo, o artigo 121, caput, do Código Penal e o artigo
123 do mesmo diploma, o texto do primeiro – norma geral – estabelece: “matar
alguém”; o do segundo – norma
especial – dispõe: “matar, sob a
influência do estado puerperal, o
próprio filho, durante o parto ou logo após”.
É fácil perceber, considerando que a morte do infante ocorra após seu
nascimento com vida, que a norma do 123, engloba todos os elementos da norma do
121, acrescentando outros ditos
especializantes (“estado puerperal”, “o próprio filho”, “durante o parto
ou logo após”). Se tais elementos se fazem presentes, o agente responde, tão
só, pelo crime de infanticídio.
11.
Critério da subsidiariedade
A subsidiariedade ocorre quando uma norma
incriminadora que define crime de menor gravidade está abrangida pela norma
incriminadora que define delito de maior gravidade, nas circunstâncias
concretas que o fato ocorreu[15].
Neste caso a norma subsidiária é afastada pela aplicabilidade da norma
principal que tem sempre pena mais grave. A rigor, a figura típica
subsidiária está contida na principal.
A subsidiariedade pode ser:
a) Tácita – quando os elementos do tipo objetivos de
determinada norma incriminadora funcionam também como elemento do tipo de outra
norma incriminadora, de maior gravidade punitiva, de forma que esta última
exclui a aplicação simultânea da primeira. Note-se que no furto qualificado
pela destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa (CP, art. 155, §
4º, I), o agente, além de subtrair a coisa alheia móvel, destrói ou danifica
obstáculo à subtração realizando, também, o tipo previsto no artigo 163. No entanto,
com esse último é subsidiário vez que está contido no primeiro - qualificado
por isso - não incide no caso, aplicando-se tão só o delito de furto.
Figure-se a seguinte hipótese: João, chefe do tráfico
em um morro da capital carioca determina a Marcelo, Paulo, Fabrício e Antônio,
moradores da favela local toque de recolher, dizendo que, não sendo obedecido,
matará a todos eles. João realiza, assim, o tipo descrito no artigo 147 do
Código Penal (ameaça), mas o faz para constranger tais pessoas a permanecerem
em casa por determinada hora, João, desta maneira, realiza, também, o tipo
previsto no artigo 146 (constrangimento ilegal). Ambos os tipos incidirão? A
resposta é negativa. Prevalece o delito principal, pois nele já está contido o
subsidiário, tanto que a pena é mais grave. O mesmo ocorre, ainda, por exemplo,
com a omissão de socorro (CP, art. 135) e o homicídio culposo (CP, art. 121, §
5º, segunda figura).
b) Expressa – quando a norma textualmente subordina a
sua aplicação a não-aplicabilidade de uma outra norma mais severa[16].
Consultando o artigo 132 (perigo para a vida ou a saúde de outrem), não é
difícil perceber que sua incidência é condicionada a não existência do delito
mais grave, a tentativa de homicídio (CP, art. 121, c/c 14, II). A lesão corporal
seguida de morte (CP, art. 129, § 3º) condiciona sua subsunção à evidência de
não existir prova da vontade de produzir o resultado morte, havendo prova de
uma tal vontade, incide o tipo de homicídio doloso (CP, art.121). As
contravenções de vias de fato (LCP, art. 21) somente têm aplicação se não
ocorrer à lesão corporal simples (CP, art. 129).
Note-se que, embora exista uma zona cinzenta, há
diferença com o critério da especialidade. Neste a relação é de gênero e
espécie, na subsidiariedade, ao contrário, os fatos previstos em uma norma e na
outra “não estão em relação de espécie a
gênero, e se a pena do tipo principal (sempre mais grave que a do tipo
subsidiário) é excluída por qualquer causa, a pena do tipo subsidiário pode
apresentar-se como ‘soldado de reserva’ e aplicar-se pelo residuum”[17].
12.
Critério da Consunção
Ocorre a
consunção, também chamada de absorção, quando o comportamento definido por uma norma incriminadora é meio
necessário ou etapa de preparação ou execução de outro crime.
Por vezes, dá-se também a relação consuntiva quando,
no mesmo contexto fático, o comportamento definido por uma norma incriminadora
constitui conduta anterior (ante factum) ou posterior (post factum) do agente, cometida em conexão teleológica ou consequencial
atinente a outro crime.
Na relação de consunção os fatos se apresentam de parte a todo, de meio a fim, de fração a
inteiro. Nestes casos a norma incriminadora minorem
é excluída. São exemplos: minus a plus (crimes progressivos); meio
a fim (crimes complexos), embora para alguns, prevaleça, neste último caso, o
critério da especialidade; parte a todo (tentativa e consumação).
Aplica-se o critério da consunção ao crime progressivo
e a progressão criminosa. Crime progressivo
é aquele em que o agente para alcançar a produção de um resultado de maior
gravidade, passa por outro resultado de menor gravidade (v.g. homicídio [CP,
art. 121] e lesão corporal [CP, art. 129], sendo o último crime absorvido
[consumido] pelo primeiro, o qual prevalece. Os crimes de dano absorvem os de
perigo.
O crime progressivo difere, para certos setores da
doutrina[18],
da progressão criminosa, a qual
somente ocorre quando há pluralidade de desígnios ou propósitos. Na progressão criminosa o agente pretende, de
início, realizar, tão só, um determinado tipo. No entanto, logo após, com um
novo desígnio, aproveitando-se imediatamente da realização do crime já
cometido, desenvolve nova atividade realizando um segundo delito. Um exemplo
explicita o conceito: Pedro, querendo aplicar uma surra em José, após desferir
contra ele socos e pontapés percebe que ao cair ao solo José desfaleceu. Com
isso, pensa então, só agora, em matar seu desafeto. Toma de uma faca que
carregava e desfere contra José vários golpes, matando-o.
Advirta-se que a matéria atinente à progressão
criminosa, além de controvertida, é marcada pela insegurança da doutrina que
defende a sua possibilidade.
O critério da consunção (e para
alguns estudiosos o da subsidiariedade tácita, em relação ao ante factum) abrange condutas anteriores
ou posteriores ao crime que são consideradas impuníveis, trata-se do pós-fato (post factum) e do antefato (ante factum) impuníveis, estudados por
Honig e extremamente controvertidos. Para exemplificar, não se pune o dano (CP,
art. 163), depois de furtada (CP, art. 155) a coisa alheia móvel, como tampouco há punição por estelionato
(CP, art. 171) se o ladrão põe a venda a
coisa furtada (CP, art. 155) para terceiro de boa fé. Respeitante ao antefato,
não se pune o agente pela contravenção de instrumentos empregados usualmente na
prática do furto (LCP, art. 25) em relação ao próprio furto (CP, art.
155). A violação de domicílio (CP, art.
150) é consumida pelo furto (CP, art. 155) que se pratica na residência. O
crime de porte de armas (ED [Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003] art. 14) é
consumido pelo de homicídio (CP, art. 121)? A melhor doutrina entende que se os
delitos ocorrem dentro de um mesmo contexto fático, ou seja, se o agente
apossou-se da arma exclusivamente com o propósito de matar aquela determinada
pessoa, ocorre o antefato impunível, todavia se a posse da arma era ocasional,
fora do contexto fático, não existe consunção[19].
Sempre é necessário verificar o nexo de dependência entre os dois crimes
para averiguar a existência de consunção ou de concurso material (quando os
dois crimes incidem). Nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça já fez ver
que:
O princípio da consunção
pressupõe a existência de um nexo de dependência das condutas ilícitas, para
que se verifique a possibilidade de absorção daquela menos grave pela mais
danosa. Incabível a aplicação automática do princípio da consunção, em
desconsideração às circunstâncias fáticas do caso concreto, em que as infrações
ocorreram em momentos distintos. Quando constatado que os crimes de porte
ilegal de armas e de homicídio qualificado se afiguram absolutamente autônomos,
inexistindo qualquer relação de subordinação entre as condutas, resta
inviabilizada a aplicação do princípio da consunção, devendo o réu responder por
ambas as condutas. (STJ, HC 51660/DF, Quinta Turma, Rel. M. Gilson Dipp; DJ
10.04.2006, p. 260).
13.
Critério da Alternatividade
Muitos
doutrinadores sequer mencionam a alternatividade como critério para o conflito
entre regras, até porque, este parâmetro destina-se a solucionar um problema
atinente aos denominados crimes de ação múltipla ou delitos de
conteúdo variado, os quais são resolvidos, segundo Hungria, pelo critério
da consunção[20].
Estes delitos são compostos de vários núcleos (= verbos que indicam qual a ação
ou omissão cometida) e a realização de todos implica na incidência única da
regra e não em uma múltipla incidência. Assim, diz-se que há alternatividade
quando o agente ainda que realizando mais de um núcleo não responde mais de uma
vez pelo delito (v.g. no crime de induzimento, instigação e auxílio ao suicídio
(CP, art. 122) se o agente induz (faz nascer à ideia de
suicídio) a vítima ao suicídio, logo depois a instiga (incentiva) e
ainda lhe empresta uma arma (auxilia), vai responder pelo crime uma
única vez. Note-se, por importante, que as ações devem ocorrer no mesmo
contexto fático. Com a reforma produzida pela Lei 12.015/2009, diga-se por
importante, quem, no mesmo contexto fático, constrange uma pessoa a conjunção
carnal e, logo em seguida. pratica contra ela outro ato libidinoso diferente da
conjunção carnal, pratica apenas um crime, o crime de estupro (CP, art. 213).
14.
Hierarquia dos critérios
Por derradeiro, é preciso esclarecer
que dentre os critérios mencionados, o cronológico, hierárquico e da
especialidade são bem mais laborados e expostos com precisão pela doutrina. Os
demais devem ser usados supletivamente, tão só quando os primeiros não
resolverem satisfatoriamente o problema. Por fim, o estudo (acima) do tipo
objetivo, possibilitará capacitação suficiente para percepção da norma
penal incriminadora aplicável a espécie.
[2] BRUNO, Aníbal. Crimes Contra a Pessoa. Rio de
Janeiro: Rio, 1975, p. 24.
[3] Vide Dec-Lei
3.688 de 03 de outubro de 1941.
[4] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal – Parte Especial. Rio de Janeiro: Forense,
1981, p. 14.
[5] WELZEL, Hans. Derecho Penal – Parte Generale. Trad. Fontán Balestra. Buenos
Aires: Depalma, 1956, p. 1.
[6] MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Trad.
Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 42.
[7] ZAFFARONI, Eugenio
Raúl & PIERANGELI, José Henrique. Manual
de Direito Penal Brasileiro,
São Paulo: RT, 1997, p. 446 e 447.
[8]O vocábulo é largamente utilizado por PONTES DE MIRANDA (Tratado de Direito Privado, I, §
1º, 4) que o verteu em vernáculo por suporte fáctico.
[9]Teoria indiciária (ratio
cognoscendi) de MAX ERNST MAYER. Há
seguidores de EDMUND MEZGER, no entanto, que defendem que a tipicidade e a
ilicitude formam um todo unitário, o tipo, então, identificar-se-ia com a
ilicitude (ratio essendi), vide, sob
este aspecto, a teoria dos elementos negativos do tipo e a teoria da tipicidade
conglobante (ZAFFARONI).
[10] MUÑOZ CONDE,
Francisco. Teoria Geral do Delito.
Teoria Geral do Delito.
Trad. Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 48.
[11] MUÑOZ CONDE,
Francisco. Teoria Geral do Delito.
Teoria Geral do Delito.
Trad. Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 70 e 71.
[12] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol.
I, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 163.
[13] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, trad. M. Celeste dos Santos.
Brasília: UNB, 1996, p. 71.
[14] BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico - Lições de Filosofia do Direito, trad.
Márcio Pugliesi, E. Bini e Carlos Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 204-210.
[16] BITENCOURT, Cezar Roberto. Lições de Direito Penal – Parte
Geral, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 63.
[17] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo I. Rio de Janeiro:
Forense, 1977, p. 147.
[18] STEVENSON, Oscar. Concurso Aparente de Normas
Penais, in: Estudos em Homenagem a Nelson Hungria, Rio de Janeiro:
Forense, 1962, p. 41.
[19] STEVENSON, Oscar. Concurso Aparente de Normas
Penais, in: Estudos em Homenagem a Nelson Hungria, Rio de Janeiro:
Forense, 1962, p. 42.
[20] HUNGRIA, Nelson, Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo I, Rio de Janeiro:
Forense, 1977, p. 148.