Em 12 de setembro do ano de 2000, tive a possibilidade de, então, examinar em ação cautelar inominada de natureza penal (Proc. 81/00 da 8ª Vara Criminal de Maceió) a questão respeitante a anencefalia. Naquela oportunidade exarei a primeira sentença no nordeste que decidiu pela possibilidade legal do “abortamento”. Na linha de vários votos do Supremo Tribunal Federal no dia de hoje, em especial do Min. Celso de Mello, fiz ver naquele ano:
“Sabe-se que o Código Civil Brasileiro orienta-se pela teoria de que a personalidade inicia-se a partir do nascimento com vida, todavia, assegura os direitos do nascituro desde a concepção. Note-se que nascituro significa, segundo registram os léxicos, aquele que há de nascer. Juridicamente, não é outra coisa senão o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro certo.
O Código Penal, com o seu caráter sancionador, tutela nos artigos 124 e seguintes a vida do nascituro, definindo como crime o auto-abortamento, o abortamento consentido e o abortamento praticado por terceiro com ou sem o consentimento da gestante. O Diploma Penal Pátrio, como é sabido, excetuou, tão somente, as hipóteses do aborto necessário, aquele destinado a salvar a vida da gestante e do chamado abortamento humanitário ou sentimental, aquele decorrente de estupro (art. 128), casos em que não há delito por expressa disposição legal.
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No caso dos autos, tanto a prova juntada na inicial (Ultra-sonografia Gestacional), quanto a perícia posteriormente realizada, comprovam a ausência da calota craniana (acrania) e a anencefalia, ou seja a ausência dos hemisférios cerebrais, afirmando o perito a impossibilidade de vida extra-uterina...
Neste particular a opinião dos expertos é uniforme. O Doutor Néstor G. Núñez Acevedo ensina que a acrania:
“Es una anomalía causada por la falta del cierre del extremo superior del tubo neural, en la cuarta semana del desarrollo embrionario. Su resultado es la ausencia de la bóveda craneal. A veces se acompaña de falta del encéfalo. Esta malformación es incompatible con la vida. Probabilidad 1 en 1000 nacidos. El diagnóstico se hace por ultrasonidos antes de las 16 semanas. Algunos autores agrupan la anencephalia y la espina bífida como una sola entidad. Otros sugieren que el suplemento de folatos en la alimentación disminuye la probabilidad de tener esta malformación."
Não há de duvidar que, no caso em tela, a prenhez é patológica e como leciona Nelson Hungria:
“Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto”. (Comentários ao Código Penal, vol. V. Rio de Janeiro: Forense, 1953, p. 286).
No aspecto técnico-dogmático, a dificuldade emerge do fato de que o feto está vivo, ainda que mal formado, pulsa no útero materno e sua destruição não é prevista explicitamente na lei. Entretanto, o enfrentamento que dará resposta à questão é retirado da teoria jurídica do crime.
Sabe-se da importância para o Direito Penal do Bem Jurídico, principalmente para firmar a tipicidade da conduta. “Não se concebe a existência de uma conduta típica que não afete um bem jurídico” (ZAFFARONI , Eugenio Raúl & PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: RT, 1997, p. 464). Uma das funções cumpridas pelo Bem Jurídico, segundo Zaffaroni, é a teleológico-sistemática, “que dá sentido à proibição manifestada do tipo e a limita”(ob. cit., p. 469).
Ora, a proteção finalística dada pelo legislador ao punir o abortamento é a garantia da vida do feto, cujo nascimento com vida extra-uterina espera-se, no mínimo, como provável, podendo ao nascer, adquirindo personalidade, usufruir dos direitos pertencentes a toda e qualquer pessoa.
Sendo incontroversa, cientificamente, a não sobrevivência do feto, consoante demonstrado pericialmente no caso dos autos, não existe sentido na proibição contida na norma imperativa penal pertinente ao delito de aborto, pois a nível teleológico-sistemático não há afetação a um Bem Jurídico, já que a vida é absolutamente inviável. Destarte, não há como deixar de reconhecer a ausência de tipicidade ou a atipicidade, na prática abortiva pretendida.
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Demais, conforme já ilustrado nos autos, a não interrupção da gravidez poderá acarretar sequelas psicológicas gravíssimas e, até, sequelas físicas na gestante, com possibilidade de dano à sua saúde, em especial sua saúde psicológica. A autora, juntamente com seu companheiro, estão cientes do que pretendem realizar.
Diante do exposto:
Julgo procedente o pedido, para autorizar o médico competente e sua equipe, credenciados pelo SUS, a proceder com a interrupção da gravidez da autora, qualificada na inicial.
Expeça-se mandado, juntando-se cópia da perícia médica.
Cumpra-se.
P. R. I.
Maceió, 12 de setembro de 2000.
ALBERTO JORGE CORREIA DE BARROS LIMA
JUIZ DE DIREITO”