É evidente que um quadro televisivo de humor, até pela rapidez imposta pela televisão, não pode e não avalia com profundidade os sintomas sociológicos referentes ao nosso país. Mas que os artistas têm um poder de percepção maior que os tecnocratas é indiscutível, basta saber ler e conferir na história.
Não obstante a manifestação do Supremo Tribunal Federal (ver ADPF 153), ainda pairam várias dúvidas sobre a possibilidade de incidência de leis penais sobre os torturadores, homicidas e estupradores da ditadura militar brasileira, aqueles que, sob desvairados pretextos e se prevalecendo dos anteparos do poder, usaram e abusaram da autoridade investida para cometer os mais violentos ataques aos direitos fundamentais das vítimas.
Esta semana fiquei surpreso com a defesa “técnica” e arraigada, procedida por jornais e até professores de Penal, de que a Lei de Anistia, para este sombrio período da história nacional “conferiu uma ampla extensão aos crimes políticos” (vide Folha de São Paulo de 24 de março de 2012). Assim, restaria sepulta qualquer tentativa, como a da Procuradoria da República no Pará, que tenta processar o Coronel reformado do Exército, Sebastião Curió, pelo delito de sequestro qualificado, em concurso material, contra cinco militantes, capturados durante a repressão à guerrilha do Araguaia na década de 70 e até hoje desaparecidos.
Em Direito Penal, anistia significa, rigorosamente, o esquecimento jurídico do delito. Trata-se, como se reporta a mais abalizada doutrina, da declaração legal (por lei stricto sensu) de que o crime deve ser olvidado. Situa-se, com a graça e o indulto, no quadro dos institutos concernentes ao poder estatal de clemência. A opinião dos doutos não diverge de que ela tem por objeto fatos determinados e não pessoas, fatos que envolvam delitos políticos, militares e eleitorais. Ainda que se admita a anistia para crimes comuns – e isso já constitui uma exceção – estes devem estar conexos com aqueles, todavia, os crimes comuns que atentem contra os bens jurídicos mais densos não comportam jamais a aplicaçao do perdão do Estado. Sempre se entendeu desta forma, tanto que a Constituição de 1988 foi expressa e consignou no catálogo dos direitos e garantias fundamentais a vedação da anistia para os crimes hediondos, para a tortura, para o tráfico ilícito de entorpecentes e para o terrorismo (CF, art. 5º, XLIII).
Parece-me, pois, que os delitos permanentes - todos aqueles em que conduta e consumação são contínuas no tempo, como o sequestro, a extorsão mediante sequestro e o cárcere privado -, quando ofendem os bens jurídicos mais importantes (é o caso dos exemplos) não se coadunam com o instituto da anistia e, caso não tenha operado a prescrição, podem e devem motivar a ação penal pública. Atente-se, por derradeiro, que, no ano de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu condenar o Brasil a promover a responsabilização criminal pelos desaparecimentos forçados ocorridos no Araguaia, por força da natureza permanente desses crimes.
Ferrajoli, um dos ícones dos defensores do chamado garantismo no nosso país, adverte que o Direito Penal, entre outras funções, tem por escopo evitar as reações informais, extremamente mais graves e sem nenhuma garantia para os acusados/condenados. Não é estranho o crescimento absurdo das milícias entre nós e o recrudescimento da violência.
Mas, há "teses", "hipóteses" e "estudos de vanguarda" para tudo: tortura e sequestro admitidos como "extensão de crimes políticos" para aplicação da anistia? Ficamos hoje, porém, com a tese do artista, do nordestino que cresceu no Rio de Janeiro e encantou o país com seu humor, suas crônicas e seus impagáveis personagens. Dentre eles – todos tão brasileiros – um inspirado, é verdade, num certo conde da Romênia, porém brasileiro demais, que sabia bem, como sabemos todos – menos, é claro, aqueles “intelectuais” – sobre a aplicação do Direito Penal no Brasil.