Finalmente o ano começou no Brasil – sim, começa, de fato, depois do carnaval –, todavia os problemas são os mesmos. Matéria especial da Folha de São Paulo deste domingo reprisa uma das minhas preocupações, fruto, inclusive, de post publicado neste blog (ver ENTRE AS IMUNIDADES PARLAMENTARES E A IMUNIDADE PENAL) e que diz respeito à chamada prerrogativa de foro, um resquício aristocrático que permanece no Brasil, como em nenhum outro país democrático, impedindo a realização do Direito Penal para setores privilegiados da política.
A reportagem, embora enfoque bem a questão de que os tribunais não estão preparados para instrução e sim para debates de teses jurídicas, é ingênua na análise de que seria possível construir mecanismos destinados a este fim nestas cortes de justiça, em particular no Supremo, cuja função deveria ser, exclusivamente, de corte constitucional. Os juízos de primeiro grau fazem bem este ofício. Dê-lhes um pouco mais de estrutura, diminuam o absurdo número de recursos e modifiquem o disparatado sistema de nulidades que teremos uma justiça penal mais rápida, mais eficaz, melhor.
O lado bom da história é que, pela primeira vez, vejo um ministro do Supremo Tribunal Federal encampar uma tese que defendo há anos, tanto na orientação de trabalhos científicos na Universidade Federal de Alagoas, como em livro (no prelo) publicado em co-autoria sobre o tema. A tese é que a imunidade só pode ser compreendida, no interior do sistema Constitucional, para os delitos cometidos em razão da função, isso porque o subsistema constitucional organiza suas normas dialogicamente, de modo que umas não podem ser interpretadas senão através dos recíprocos significados com as outras. Comparem a entrevista do ministro Celso de Mello (Folha, 26.02.2012) com o que publiquei neste espaço em 17 de maio de 2009.
Entrevista Celso de Mello (Folha de São Paulo. São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 2012)
Ministro do STF defende fim do foro privilegiado
Para Celso de Mello, benefício não tem similar no mundo e deveria ser limitado a casos de delitos cometidos por políticos em razão do mandato.
DE BRASÍLIA
Mais antigo dos integrantes do STF (Supremo Tribunal Federal), onde despacha há 23 anos, o ministro Celso de Mello, 66, defende a extinção do foro privilegiado para todos os políticos e autoridades em matéria criminal.
A mudança só seria possível se o Congresso aprovasse uma emenda à Constituição acabando com o privilégio, mas o ministro afirmou em entrevista à Folha que pensa em propor a seus colegas no STF uma solução alternativa
A idéia seria restringir o direito ao foro especial a processos que envolvam delitos cometidos em razão do exercício do mandato. A mudança dependeria da aprovação do plenário do STF.
Folha - Como o sr. analisa a situação do foro privilegiado no Brasil?
Celso de Mello - A minha proposta é um pouco radical, porque proponho a supressão pura e simples de todas as hipóteses constitucionais de prerrogativa de foro em matéria criminal.
Mas, para efeito de debate, poderia até concordar com a subsistência de foro em favor do presidente da República, nos casos em que ele pode ser responsabilizado penalmente, e dos presidentes do Senado, da Câmara e do Supremo. E a ninguém mais.
Eu sinto que todas as autoridades públicas hão de ser submetidas a julgamento, nas causas penais, perante os magistrados de primeiro grau.
Ao contrário do STF, que é um tribunal com 11 juízes, você tem um número muito elevado de varas criminais [na primeira instância], e pelo Estado inteiro.
Com essa pluralização, a agilidade de inquéritos policiais, dos procedimentos penais é muito maior.
Acho importante nós considerarmos a nossa experiência histórica. Entre 25 de março de 1824, data da primeira carta política do Brasil, e 30 de outubro de 1969, quando foi imposta uma nova carta pelo triunvirato militar, pela ditadura, portanto um período de 145 anos, os deputados e os senadores não tiveram prerrogativa de foro.
Mas nem por isso foram menos independentes ou perderam a sua liberdade para legislar até mesmo contra o sistema em vigor.
A Constituição de 1988, pretendendo ser republicana, mostrou-se estranhamente aristocrática, porque ampliou de modo excessivo as hipóteses de competência penal originária.
Como é o foro especial em outros países?
Algumas cortes constitucionais européias detêm competência penal originária.
A Corte Constitucional italiana, por exemplo, mas para hipóteses muito limitadas, quatro ou cinco, e nada mais. Na França, o Conselho Constitucional detém competência penal originária em relação a pouquíssimas autoridades, cinco, se tanto.
Ou seja, são constituições republicanas, mas que refletem a mesma parcimônia que se registrara na carta monárquica brasileira de 1824.
No modelo norte-americano, já ao contrário, não há prerrogativa de foro.
Temos algumas constituições que se aproximam do modelo brasileiro, mas este é quase insuperável, quase invencível.
Vale a pena pegar algumas constituições estaduais do Brasil para ver as autoridades com foro junto ao Tribunal de Justiça. Começa com o vice-governador e vai embora. Entra Deus e todo mundo.
Sua opinião pelo fim do foro não é minoritária no STF?
Imagino que sim, mas isso em termos de formulação de novas regras constitucionais, a depender, portanto, de uma proposta de emenda constitucional que seja apresentada ao Congresso.
Mas acho que o STF talvez devesse, enquanto a Constituição mantiver essas inúmeras hipóteses de prerrogativa de foro, interpretar a regra constitucional nos seguintes termos: enquanto não for alterada a Constituição, a prerrogativa de foro seria cabível apenas para os delitos cometidos em razão do ofício.
Isso significa que atuais titulares de cargos executivos, judiciários ou de mandatos eletivos só teriam prerrogativa de foro se o delito pelo qual eles estão sendo investigados ou processados tivessem sido praticados em razão do ofício ou no desempenho daquele cargo.
O sr. acha possível que o Congresso leve adiante uma proposta para extinguir o foro?
Sinto que o Congresso Nacional não tem essa mesma percepção.
Porque recentemente eminentes senadores apresentaram uma proposta de emenda constitucional que amplia a competência penal originária do Supremo para dar prerrogativa de foro a membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho do Ministério Público.
Tenho a impressão de que, nesse sentido, caminhamos por caminhos opostos.
Qual é o impacto, na rotina dos ministros, dos casos relativos ao foro?
A situação é dramática. É verdade que os institutos da repercussão geral e da súmula vinculante [instituídos há alguns anos para acelerar a tramitação de processos] tiveram um impacto altamente positivo sobre a prática processual no STF.
Mas, por outro lado, no que se refere aos processos originários, vale dizer, às causas que se iniciam desde logo, diretamente no Supremo, houve um aumento exponencial desse volume, e isso se verifica no cotidiano da corte.
No ano passado, trabalhei 14 horas todos os dias e a dormir três horas, tanto que cheguei ao final do ano com minha pressão a 18 por 10 e passei Natal e Ano Novo entre um hospital e outro.
Eu saio muito tarde, mas agora tomei uma resolução. O médico, aliás, falou: "Ou você faz isso ou você acaba..."
Tive que fazer um exame para descartar um AVC e um infarto agora, no final do ano, porque estava com sintomas próprios desses distúrbios.
Alguns ministros do STF usam juízes-auxiliares para pedir informações a órgãos públicos ou tomar depoimentos de testemunhas. Por que o sr. não adota essa medida?
Alguns ministros têm os chamados juízes instrutores, que nem eu nem [o ministro] Marco Aurélio Mello [temos].
Em primeiro lugar, porque acho que o estudo [que embasará a decisão] tem que ser meu. Por isso é que acabo trabalhando essas 14 horas por dia. É um ato pessoal. Mas respeito a posição dos outros juízes, cada um tem seu estilo de trabalho.
Em segundo lugar, entendo que o magistrado, ou ele exerce suas funções jurisdicionais, podendo acumulá-las com um cargo docente, como permite a Constituição, ou não se lhe oferece qualquer outra alternativa.
Acho que não tem sentido convocar um juiz para atuar como um assessor de ministro. A mim, não parece que a Constituição autorizaria isso.
Nos processos que examinamos, em geral a Procuradoria-Geral da República faz "convite" aos deputados para interrogá-lo. O sr. tem dito que a lei não autoriza esse tratamento.
Comecei a notar que o procurador-geral da República dizia, em seus requerimentos ao Supremo, "requeiro que seja convidado" ou "intimado a convite" aquele parlamentar sob investigação. Eu falei: "Não pode ser". A pessoa está sendo investigada e quem tem essa prerrogativa é a testemunha e a vítima, e ninguém mais.
São normas de direito estrito. Tanto que agora o procurador não escreve mais "a convite". Não sei se só nos meus casos ou se ele generalizou. Porque realmente não tem cabimento isso.
Por que o sr. tem combatido o uso de iniciais para identificar os alvos de inquéritos e réus em ações penais?
O regime de investigação penal é um regime de cartas na mesa. Eu não permito que sejam colocadas iniciais [de nomes de políticos] nos processos. Num mandado de injunção, já discutimos exatamente aquilo que eu chamo de "fascínio do mistério" e o "culto ao sigilo".
Essa memória retrospectiva que, nós que vivemos sob o regime militar, temos, precisa ser relembrada a cada momento. Para que isso nunca mais aconteça. A publicidade deve ser observada.
Nós encaminhamos à sua assessoria perguntas sobre processos enviados a seu gabinete que demoraram meses para ser despachados.
Às vezes, da maneira como seja enfocada a questão, pode dar aquela impressão de que não trabalhamos. "Ah, puxa, fica tanto tempo com o processo." Na verdade, é um motivo de angústia para cada um. Você se angustia, "meu Deus, eu tenho esses casos [para despachar]", e se torna materialmente impossível que você faça a tempo e hora.