quarta-feira, 27 de abril de 2011

NORMA JURÍDICA E SANÇÃO: PARA CONFERIR POSIÇÕES DIFERENTES


Do ponto de vista formal, juristas importantes asseveram que a norma jurídica é uma proposição, ou seja uma reunião de palavras, sinais, que têm um significado em conjunto. Essa proposição, para muitos autores, é sempre prescritiva, vale dizer, é uma diretiva de comportamento que se apresenta, na linguagem lógica, com a seguinte estrutura: “Se é X, deve ser Y”. Tal estrutura, como exemplo, é utilizada tanto para a prescrição “se não pagares em dia, deves ser multado”, como para a prescrição: “se roubares alguém, deves ser punido com reclusão e multa”. 
 
Em face dessa estrutura, discute-se acerca da sanção. Para KELSEN, não existe norma jurídica sem sanção. Afirma ele que o direito é uma ordem coativa. Isso não significa que pertença à sua essência "forçar" a conduta prescrita pela norma jurídica. A coação, aduz KELSEN, só terá efeito quando se verificar o comportamento contrário ao direito, exatamente para este caso é que são estatuídos os atos coativos, os quais funcionam como sanção.

A sanção assim, integraria sempre a estrutura da norma jurídica. Tal estrutura seria dúplice, composta por uma norma primária e uma norma secundária dando forma a um juízo fundado em hipótese.
A norma primária, para KELSEN*, é prescribente de uma sanção, operando quando a norma secundária – a ordem de uma conduta para determinada situação de fato – for descumprida.     

Neste passo, KELSEN entende a sanção como necessária para toda norma jurídica. Não fosse assim, segundo ele, a diferenciação entre direito e moral só poderia vingar pela  origem, rejeitando-se toda e qualquer definição do direito que não o determine como ordem de coação. Toda norma sem sanção seria norma incompleta ou norma jurídica não-autônoma, carecendo de outra estatuidora de um ato de coerção para ter validade.

No que pese a forte influência  kelseniana, vários autores insurgiram-se contra a idéia de sanção como elemento essencial da norma jurídica. Entre nós, PONTES DE MIRANDA adota a posição de que  na caracterização da norma jurídica completa, basta,  tão somente,  a descrição de um fato (chamado por ele de suporte fático)  e a prescrição de efeitos jurídicos a ele especificamente imputados, independente de serem esses efeitos uma sanção. Deste modo, afirma que tanto a norma primária como a secundária podem ser, ambas, uma proposição jurídica completa. A menção a um fato (suporte fático) e a um preceito é bastante. 

LARENZ, criticando a teoria imperativista, que quer reservar como normas jurídicas apenas as proposições imperativas, ou seja, aquelas disposições jurídicas que, em última análise, restringem-se a prescrever ou proibir determinadas condutas, assegura que nem toda a norma jurídica contém, precisamente, um comando ou uma proibição, mas contém decerto uma ordenação de vigência. O sentido como proposição normativa é de colocar em vigência conseqüências jurídicas.

Com uma posição mais extremada, HART entende que somente as normas penais possuem sanção, vez que se caracterizam como ameaça de uma imposição aflitiva, cujo propósito é a conduta proibida. 
       
BOBBIO, em outro enfoque, destaca também o aspecto premial das sanções. Estas, segundo ele, são postas pelo ordenamento jurídico para obter um dado comportamento humano que o legislador considera desejável, pouco importando, em tal conceito, se a sanção é positiva ou negativa.  Redimensiona o pensador peninsular o que chama de “função promocional” do ordenamento jurídico, na qual o aumento vertiginoso das chamadas normas de organização (aquelas com as quais o Estado regula sua própria atividade assistencial, fiscalizadora e produtora) confere às sanções positivas um outro relevo.

Para BOBBIO, existem também normas sem sanções, coexistindo com as demais no ordenamento jurídico. Em todo o ordenamento existem normas as quais ninguém poderia indicar qual a conseqüência desagradável imputada em caso de violação. 

* Tal terminologia é abandonada por Kelsen na segunda edição da Teoria Pura do Direito, onde passou a chamar as normas secundárias anteriores de normas jurídicas não-autônomas. Segundo Maria Helena Diniz, (A Ciência Jurídica, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 102), Kelsen teria reduzido todas as normas a um só tipo, denominado imperativo sancionador. Entretanto, o próprio Kelsen em sua obra póstuma (Teoria Geral das Normas, trad. José Florentino Duarte, Porto Alegre, Fabris, 1986, p.181-3), torna a usar a terminologia primeira, porém com uma diferença, agora a norma primária é a que descreve a conduta e norma secundária a que contém a sanção. Entre nós, Marcos Mello (Teoria do Fato Jurídico, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 29) adverte que embora seja possível entender-se haver Kelsen revisto a concepção original, tal entendimento deve ser visto com reservas, arrolando em sua obra os motivos e contradições os quais merecem a admoestação, ante conclusões precipitadas.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

LIBERDADE DE EXPRESSÃO NÃO É "LIBERDADE DE AGRESSÃO"




Não há uma “liberdade de agressão” como quer o editorial da Folha de São Paulo do último dia 5 de abril, ainda que se concorde que o Caso Bolsonaro tenha, também, características de ação de “estridência profissional” destinada a adular uma parte retrógada do eleitorado.

Parece-me incontestável que não se possa permitir, sob qualquer pretexto, a invasão do estado para as chamadas inclinações interiores. O que cada um de nós pensa, a respeito de qualquer questão, não pode ser modificado por nenhuma outra pessoa, muito menos pelo Estado. Não é possível punições para as nossas convicções, por mais bizarras, cretinas, terríveis e vis que elas possam parecer.

No entanto, quando as externamos, devemos fazê-lo com especial prudência, uma vez que saímos da nossa esfera individual, invadindo o espaço do alter, o que implica, necessariamente, a possibilidade de responsabilização cível, ou mesmo penal.

É que a agressão, do latim aggressio, diz respeito, em sua própria significação etimológica, a um ato de acometimento, de insulta, de desrespeito, de injúria, conferindo ao outro mecanismos de reparação de um possível dano moral e ou material. A liberdade de expressão é, assim, sempre correlata ao direito de impressão.

Se um membro do parlamento federal afirma, em rede nacional de televisão, que seria promíscua a relação amorosa entre sua filha e um judeu, ele exerce, tão somente, sua liberdade de expressão? Não estaria praticando o delito de racismo, em face da subsunção do texto previsto no artigo 20 da Lei 7.719/1989 (praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional)? Ele manifesta-se como pai, ou como parlamentar? Protege-o o manto “inviolável” da indenidade?   

O exemplo com o judeu é, obviamente, proposital. Na medida em que toleramos manifestações como estas, especialmente as divulgadas nos meios de comunicação, por agentes políticos, jornalistas, cientistas sociais e todos os outros formadores de opinião, estamos alimentando vetores nazifascistas que podem resvalar para variadas manifestações descriminatórias, ataques físicos e até mesmo mortes dos membros do grupamento hostilizado.

Em um caso também recente, os jornalistas silenciaram sobre a “liberdade de expressão” de um juiz que, em sede de decisão judicial pertinente a uma lesão contra uma mulher na esfera doméstica, externou que o problema da humanidade derivava da condição feminina. Compreendendo ter havido uma agressão de gênero na manifestação do pensamento, o CNJ, não teve dúvidas, puniu o magistrado com a pena de disponibilidade.

Já pontuei, aqui mesmo, por diversas vezes, a necessidade de revisão do sistema de im(pu)unidade parlamentar, principalmente por conta do alto grau de corrupção política no Brasil. Não gostamos tanto da comparação com os Estados Unidos? Então por que não verificar como eles tratam a indenidade? Precisamos, também, eu insisto, modificar o processo penal – atrelado desde a infância à nefasta influência cartorária do sistema português e italiano –,  carregado de fórmulas vazias e com um sistema recursal esquizofrênico de assombrar psiquiatras.  

A cultura e o enfadado discurso da “tolerância” do povo brasileiro no pertinente à reação formal do estado, especialmente quanto à utilização da sanção penal, tem produzido mecanismos de violência informal, sobretudo no plano horizontal, nunca antes observados, com registros, inclusive, de números de homicídios havidos por endêmicos.   

É evidente a urgência nas políticas destinadas à educação, à distribuição de riquezas, à diminuição das desigualdades, esta última, inclusive, no controle pelo STF de teses que, de tão díspares, beiram instituir uma justiça dual: uma para ricos, outra para pobres. Todavia, é inescondível a necessidade da resposta penal que, como nenhuma outra, diminui as tensões causadas na coletividade pelo crime e reforça os valores sociais mais caros.  

O caso do deputado federal Jair Bolsonaro é, certamente, risível e, se serviu para promoção pessoal deste sujeito e, de certo modo, da insossa filha de Giberto Gil, prestou-se, por outro lado, para os donos dos jornais gritarem, através de seus jornais, que eles têm direito de dizer o que quiserem. Mas, eu desconfio, sinceramente, que, se Bolsonaro, ao invés de negros ou gays, “agredisse” aos judeus, a mídia reagiria de outra forma e a questão da descriminalização, seria, a meu aviso, “trivial”.    

Confira, na íntegra,  o editorial da Folha de São Paulo:

"Liberdade de agressão

Caso Bolsonaro não justifica abrir precedente contra livre expressão do pensamento ou contra caráter inviolável do mandato parlamentar

Não carece de um Tiririca a Câmara de Deputados que conta com profissional da derrisão do calibre de um Jair Bolsonaro (PP-RJ). Políticos de sua estatura são como o sal de uma democracia; no Brasil, atenuam de modo passageiro a sensaboria da cena parlamentar e se dissolvem na torrente da história sem deixar traços.
Bolsonaro só vale uma discussão que transcenda a triste figura. Sua incontinência verbal desencadeia um questionamento sobre instituto angular da liberdade política, a imunidade parlamentar assegurada no artigo 53 da Constituição: deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Apenas por isso precisa ser levada a sério.
Em entrevista a programa humorístico de TV, o deputado havia associado o namoro hipotético de um filho com mulher negra à falta de educação e à promiscuidade. Por cálculo ou cinismo, disse depois que pensara tratar-se de pergunta sobre homossexualidade.
Antes de mais nada, parece evidente que a manifestação se encontra coberta pelo espectro amplo da liberdade de opinião garantida pelo artigo constitucional sobre a inviolabilidade do mandato. A mesma Constituição abriga a liberdade de expressão como cláusula pétrea, de maneira lapidar, no artigo 5º: "É livre a manifestação do pensamento". Bolsonaro disse o que pensa; alguns brasileiros pensam como ele e o elegeram. Foi uma declaração política.
Detestável, pelo que exala de preconceito, sua insinuação nem por isso se enquadra facilmente na legislação contra discriminação racial. Há quem considere adequado adotar uma noção relativa da imunidade parlamentar e atribuir-lhe o crime punível com detenção de um a três anos na lei nº 7.719/1989 (praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional).
Nunca foi trivial, contudo, definir o que constitui discriminação. No Estatuto da Igualdade Racial (lei nº 12.288/2010), ela figura como toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais. É transparente a intenção do legislador de punir atos concretos de discriminação, que tragam dano a pessoas reais, e não tanto convicções e preconceitos genéricos sobre diferenças raciais.
Repita-se: as palavras de Bolsonaro são lamentáveis. Bem faria a Câmara se alguma comissão de ética crível o submetesse a juízo político pela óbvia falta de decoro.
No mais, o caso se resume a um deputado que faz da estridência profissão e com isso adula uma franja retrógrada do eleitorado. Tudo insignificante demais para justificar qualquer precedente limitador da liberdade de opinião ou da inviolabilidade parlamentar conquistadas após a derrota do regime que o ex-militar enaltece
."