domingo, 22 de março de 2009

PRIMEIRAS REFLEXÕES


Escreveu Canotilho, um dos mais célebres constitucionalistas luso-brasileiros do nosso tempo, que, na modernidade, a balança da justiça já não tem mais dois pratos, pois é digital e digitaliza em termos reais interesses múltiplos e múltiplos interesses. O conceito platônico de justiça como um paradigma, como algo definitivo já não encontra ressonância em um meio social marcado pela complexidade, com valores díspares e antagônicos. Estamos vivenciando o mundo transgênico, heterogêneo, plural. O monismo morreu e com ele a inferência, carregada de platonismo, de que devemos ficar sempre ao lado do Direito e da Justiça mesmo que o mundo inteiro esteja contra. Afinal, que diabos de Justiça e de Direito são estes que contrariam todo um mundo? Que iluminado ou semideus os detém?
Mas, se já não é possível uma justiça ideal é possível fazer justiça? Para além dos clichês, das figuras de retórica, tão ao gosto do messianismo dos nossos tempos, acredito, como muitos, nas pautas em torno das quais temos certo consenso. No entanto, é indiscutível, como damos a elas interpretações variadas. O ser humano, consoante Nietzsche, está destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é a sua interpretação.
Não há, à parte os que já cederam à cretinice, quem não concorde, por exemplo, que os processos devam ser tratados com esmero, que os magistrados sejam probos, que atuem com rapidez. No entanto, só neste pequeno trecho podemos colocar, problematizando: rapidez e esmero são compatíveis? Em qual situação? Em que medida? Com quais condições? Qual o esquadro comensura a honestidade? De que honestidade falar? Da que aparece na opinião pública ou nas opiniões publicadas? Será que somos honestos conosco ou escondemos para debaixo dos travesseiros os mais pecaminosos delírios que até Freud coraria diante deles?
Então, o que resta àqueles que acreditam? Àqueles que cheios de emoções gritam, ainda que internamente, seja lá por quais motivos, para que prevaleça o que lhes parece correto? Resta o caminho que se faz caminho por caminhar.
Na caminhada descobre-se como remover os obstáculos: dialoga-se, buscando sempre o consenso possível na oxigenação dos contrários. Irredutibilidade somente quanto à dignidade de todos.
No mundo físico, segundo os estudos do Nobel Ilya Prigogine, existem dois tipos básicos de estrutura: a “estrutura de equilíbrio”, de que se tem exemplo o arranjo molecular de cristais. Este somente pode persistir como sistema isolado. O outro tipo chama-se “estrutura dissipativa”, que apenas subsiste em conexão com o ambiente – como os padrões de convecção que se formam num líquido e desaparecem quando a fonte de calor é retirada.
A justiça e o direito, permitida a adaptação, são “estruturas dissipativas”. Existem apenas em conexão com o nosso meio, com as nossas construções ou, para ser fiel ao texto, com a nossa caminhada. E ao contrário do que possa parecer aos mais apressados, tal conclusão não pretende legitimar o comportamento dos patifes, que não podem ficar impunes, mas evitar o fundamentalismo. Todos os regimes de força, toda a opressão, tiveram por esteio uma fé inquebrantável, uma crença em valores absolutos. Stalin dizimou milhões de camponeses pelas aspirações do que entendia por igualdade; Robespierre, em nome da liberdade, um dos ideais clássicos da Revolução Francesa, levou à guilhotina seus próprios companheiros; os inquisidores cristãos queimaram, valendo-se da fé que diziam ter em Deus, milhares de pessoas.
Concluir pela inexistência de valores absolutos não é, definitivamente, uma atitude pessimista e cômoda. Representa, em verdade, a possibilidade de convivência com as diferenças, a aceitação do alter, a abertura para construção contínua do novo. E já que o novo é irreversível, rejeitar os valores absolutos implica, ao menos, a possibilidade de uma caminhada melhor nas sendas que, incessantemente, aparecem ao ser humano.