domingo, 19 de junho de 2011

A MARCHA DA MACONHA: O MAL É O QUE SAI DA BOCA DO HOMEM


“Não é o que entra na boca que torna o homem impuro, mas o que sai da boca, isso torna o homem impuro”. (Mateus, 15, vers. 11).


Sempre defendi, ainda que com modulações, afinal nenhum direito é absoluto, a liberdade de expressão. Não podemos permitir, por exemplo, manifestações descriminatórias contra negros, judeus, nordestinos, africanos, para proteger um suposto direito de um imbecil que prega a destruição destes indivíduos. Para além, o direito de expressão carrega consigo o correlato dever de reparar os danos causados em hipóteses como a da calúnia, da difamação, da ameaça, o mal que sai da boca.  

Todavia,andou bem, novamente, o Supremo Tribunal Federal quando decidiu que as marchas, em curso no Brasil, pela descriminalização e legalização da maconha dizem respeito ao mero exercício da liberdade de expressão, não se configurando incitação ou apologia ao crime (CP, arts. 296 e 297), tampouco induzimento ou instigação (Lei 11.343/2006, art. 33, § 2º), pleitos desta natureza.  Ao fazê-lo, o STF colocou um basta em decisões autoritárias dos que proibiam tais manifestações. Apologia ao crime sempre foi compreendida como defesa, justificativa ou enaltecimento do fato criminoso ou do autor deste fato, no sentido de que o crime, realmente, devia ter sido cometido, mesmo que contrariando as regras e os valores tutelados pelas normas. A marcha da maconha, diferente disto, propugna não por uma louvação ao delito de posse e uso – que eu, particularmente, entendo não ser mais crime por força do que dispõe o artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal –, muito menos por uma aprovação do tráfico, mas, tão somente, pela legalização ou descriminação da utilização da erva e de sua distribuição regular. Na marcha, os indivíduos pretendem justificar que deve ser legal, porque é justo, as pessoas deliberarem, livremente, sobre aquilo que elas consomem. Em nenhum momento, os manifestantes enalteceram o uso e/ou o tráfico defendendo o cometimento do crime enquanto crime.   

Para quem não sabe, a utilização da cannabis sativa somente foi criminalizada no Brasil no final da década de 30 do século passado, o que significa dizer que por mais de quatro séculos, consumimos e distribuímos maconha em todo território brasileiro sem que isso fosse considerado infração. Nos dias atuais, muitos doutrinadores, e eu estou entre eles, entendem que a proibição do uso de substâncias entorpecentes fere o princípio constitucional penal da ofensividade na sua segunda função, aquela que proíbe o estado de criminalizar comportamentos que não ultrapassem o âmbito do próprio autor. 

O Direito Penal coloca frente a frente, no mínimo, dois sujeitos, e somente está legitimado quando o comportamento afetar bens jurídicos alheios. Mesmo com as leis vigentes, defendo que não se pode criminalizar o uso de substâncias entorpecentes quando resta provado que ninguém, além do usuário, foi por elas afetado. A saúde pública, o bem jurídico que serve para sustentar a incriminação do uso e do tráfico de substâncias tóxicas, de nenhum modo é posta em perigo quando o agente não excede seu próprio âmbito. A possibilidade de sua “escalada nas drogas”, ou sua “conversão para dependência ou/e traficância” baseia-se no emprego esotérico da premonição sob o manto da presunção jus et de jure. E o argumento de que drogado poderia praticar crimes, além de inseguro, determinaria o fechamento de farmácias (drogarias!), bem como a proibição completa da venda de bebidas alcoólicas.   

O ministro Celso de Mello fez ver, em seu voto condutor, que “a mera proposta de descriminalização de determinado ilícito penal não se confunde com o ato de incitação à prática do delito, nem com o de apologia de fato criminoso, eis que o debate sobre a abolição penal de determinadas condutas puníveis pode (e deve) ser realizado de forma racional, com respeito entre interlocutores, ainda que a idéia, para a maioria, possa ser eventualmente considerada estranha, extravagante, inaceitável ou, até mesmo, perigosa”. 

Vejam que, em trabalho encomendado pela Organização Mundial de Saúde, cientistas canadenses chegaram a afirmar que, nas sociedades mais desenvolvidas, a maconha parece ter pouca influência no incremento da violência, ao contrário do álcool. Asseguraram, para além, que a cannabis saiu-se melhor do que as bebidas alcoólicas e o tabaco em cinco dos sete testes comparativos de danos à saúde. O relatório produzido destaca que o forte consumo de fumo, maconha e bebida pode levar à dependência, mas que somente o álcool causa a chamada síndrome de abstinência. E, enquanto o uso frequente das bebidas provocam a cirrose, danos cerebrais e um aumento considerável dos riscos de acidente e mesmo de suicídio, o texto conclui que são fracas as provas de que a utilização crônica da maconha venha a produzir alterações no raciocínio, na memória e na capacidade de aprendizado. O relato destes cientistas teria sido censurado pela própria OMS conforme revelou a revista Isto É, na edição de 25 de fevereiro de 1998. 

Seria possível, ainda, defendendo, agora, o pluralismo religioso, admitir o uso da maconha no caso do rastafarianismo, uma religião nascida na Jamaica que utiliza nos seus sacramentos a “erva sagrada”. Nem se diga que, neste caso, estamos no campo do exótico absoluto. Entre nós, o emprego da ayahuasca na Amazônia foi regulamentado para religiões como o Santo Daime e a União Vegetal. A droga, para os cientistas, tem efeitos psicodélicos, mas os seus adeptos afirmam que ela produz, na verdade, uma ação enteógena, ou seja, gera uma manifestação interior da divindade. Observem, aliás, que sequer é preciso alucinógenos em alguns cultos onde os espíritos manifestam-se comumente e até podemos assistir, todos os dias, nos nossos televisores. Contudo, independente de quaisquer outras considerações, é indevida, como visto, qualquer intromissão do estado para regulação daquilo que diz respeito, exclusivamente, à esfera do indivíduo. 

Por último, se as marchas que se espalham pelo Brasil transbordam para baderna, para o “quebra-quebra”, atingindo direitos e interesses alheios, aí o estado está legitimado a agir, valendo-se, inclusive, da força, das algemas, algemas cuja regulação não deveria ter sido feita, como foi, pelo STF, mas este já é outro assunto.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O TRATAMENTO DOS ASSASSINOS NO BRASIL

O Pai do estudante Felipe Paiva, Ocimar Paiva, de 52 anos, ficou revoltado ao saber quinta-feira que o assassino confesso do seu filho, Irlan Santiago, de 22 anos, não vai ficar preso por ter se apresentado espontaneamente à polícia (veja aqui a matéria ). 

Em delito com características típicas de execução, o universitário, de apenas 24 anos, foi atingido com um tiro na cabeça quando se achava no campus da Universidade de São Paulo (USP), no dia 18 de maio. Toda uma trajetória de vida foi, com ele, destruída. 

O assassino teve, ainda, o disparate de ter dito, em seu interrogatório, que matou “por necessidade”, firmando, como se isso fosse escusável, que a vítima morreu porque reagiu. O pior, a polícia, sim a polícia, não pediu a prisão preventiva do homicida, alegando, para a omissão, como acima referido, a apresentação espontânea do indiciado (?). O vídeo impressiona pelo cinismo do bandido e pela incompetência da polícia (veja aqui ).

Oxalá peticione pela preventiva o Ministério Público, ou faça, de ofício, o Juiz competente. Mesmo com a edição da Lei 12.403/11, que ainda não entrou em vigor, é permitida a prisão preventiva para garantia da ordem pública. E aqui, não é possível ficar refém das reações autoritárias de certos penalistas que etiquetam, os que defendem o requisito, como punitivista. Tampouco, é possível temer o séquito de “juristas” que fazem coro a afirmação de que a ordem pública é uma locução vaga, indeterminada e que se presta aos mais diversos fundamentos para permitir, indevidamente, um decreto de prisão, como se as palavras não fossem sempre imprecisas, como se a ordem pública não pudesse ser colmatada pelos fatos, como se não existisse a possibilidade de se recorrer, se recorrer, se recorrer... da decisão. 

Os penalistas do iluminismo, assim eu os chamo, estão prestando um grande desserviço ao Brasil. A violência nunca foi tão forte entre nós e, atualmente, é retroalimentada pelo sentimento de impunidade e o desejo crescente de autotutela, a qual, quando materializada, produz respostas informais muito mais duras do que as penas previstas na ordem jurídica.  

Quando as teses dos penalistas do iluminismo começaram a contagiar os profissionais da área, ainda que por um processo de osmose - contato acrítico com as telas de projeções de certos cursinhos preparatórios para carreira jurídica - o receio para o pedido e a aplicação da prisão preventiva, especialmente com fulcro na ordem pública, aumentou. Tomara que com a edição da nova lei, estes profissionais tratem de colocar as coisas nos seus devidos lugares. Se existem loucos que decretam prisão preventiva fora dos marcos da racionalidade e da razoabilidade, desprezando seus pressupostos e requisitos, não podemos compactuar, só por isso, que existam esquizofrênicos que afirmem que ela não pode ser mais utilizada, ignorando o sistema de legalidade, desatendendo, também, a razoabilidade e racionalidade, em nome de uma “justiça” que maltrata os direitos fundamentais das vítimas.