quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

OFENSIVIDADE E CRIMES DE PERIGO ABSTRATO

É lugar comum, nas sociedades modernas pós-industriais européias e da América e também de alguns países “emergentes” como o Brasil, falar-se em riscos referentes a ofensas não delimitadas, globais, com afetação a múltiplos setores sociais.

Em face da complexidade que, inegavelmente, tece as relações sociais nessas sociedades, e considerando que muitos dos resultados ofensivos se produzem a longo prazo e, de todo modo, em uma situação de incerteza sobre a relação causa-efeito, lança-se mão, de forma freqüente, do recurso aos tipos de perigo, com configuração cada vez mais abstrata (crimes de perigo presumido), fundamentado-os no princípio da precaução.
 Mas há ofensa nos denominados delitos de perigo abstrato? Os delitos de perigo são aqueles em que a conduta do agente põe em risco de dano o bem jurídico tutelado pela norma; esse risco constitui, em si, o “desvalor da ação”. Dividem-se em crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato. A diferença, segundo muitos doutrinadores nacionais (Hungria, Noronha, Prado, Jesus etc) está em que, nos primeiros, a ofensa (perigo de dano) precisa de comprovação, enquanto, nos segundos, o perigo é inerente à conduta, considerada tão grave que a ofensa (perigo de dano) não necessita de demonstração empírica, vale dizer, não precisa ser provada, mormente pela importância conferida pelo legislador ao bem jurídico.  
É possível que haja, sim, ofensa. No entanto, como não há exigência da prova do perigo sofrido pelo bem jurídico, nunca poderemos precisar. Deste modo, parece-me que não há como sustentar a constitucionalidade destes delitos, a menos que se possibilite uma via interpretativa, permitindo ao agente (à sua Defesa técnica) fazer a prova de que não havia o perigo. Nesse sentido, a doutrina prevalente alemã, segundo Palazzo, insistiu numa transformação substancial da categoria, sustentando, interpretativamente, em concreto, uma possibilidade de prova contrária de não-perigosidade, que não conseguiu, no entanto, bom acolhimento jurisprudencial. A doutrina italiana já propõe a formulação de um dispositivo genérico que, junto à enunciação da legalidade, seja capaz de eliminar a subsistência do crime quando o fato, ainda que se amolde ao tipo, revele-se concretamente inofensivo.
Mas a inversão do ônus da prova é possível em matéria penal? Parece-nos que a resposta é afirmativa, porquanto a inversão aqui significa, exclusivamente, a ampliação do direito de defesa para permitir a demonstração da inexistência do perigo.
É o princípio constitucional da ofensividade, de qualquer modo, que vai obrigar o próprio juiz, no caso concreto, a averiguar se, necessariamente, era possível que a conduta praticada pelo agente pudesse causar lesão a um bem juridicamente protegido.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O BEM JURÍDICO NOS CRIMES AMBIENTAIS


  Em artigo intitulado “Fundamentação Filosófica e Jurídico-Penal da Criminalização de Condutas Ofensivas ao Meio Ambiente”, para a Revista Letras Jurídicas, da Associação Alagoana de Magistrados (Ano 48, nº 02, jul-dez 2010) sustentei que o bem jurídico penal protegido nos delitos ambientais deve fundamentar-se em uma posição ecológico-antropocêntrica.  Ecológica porque tem como pressuposto que os bens jurídicos são bens do meio ambiente, valores em si mesmo, mas pertencentes à coletividade, cuja finalidade, porém, ainda que indiretamente colocada, é a proteção dos bens jurídicos pessoais, residindo, aí, a nota antropocêntrica.  
  
  A proteção do meio ambiente em si mesmo considerado, ou seja, independente dos seres humanos, desconsidera a obviedade de que são os homens quem definem o que deve ser protegido e como proteger. De mais a mais, valendo-se, exclusivamente de um ponto de vista dito biocêntrico, teríamos problemas com a dogmática, a qual não reconhece direitos próprios a quem não tem capacidade jurídica. A natureza não é sujeito de direito e, assim, surgiriam grandes dificuldades para qualquer formulação teórica. 

  Por outro lado, a chamada teoria “monista-pessoal”, de cunho estritamente antropocêntrico, não responde satisfatoriamente à questão do bem jurídico nos crimes ambientais. Por entender que o Direito Penal do meio ambiente só, e exclusivamente, pode estar a serviço da vida e da saúde do ser humano, traz consigo complicações para autonomia deste setor, uma vez que ele acaba reduzido a casos particulares já estabelecidos nos tipos clássicos dos Códigos Penais. O assento nessa concepção resulta da própria formulação inicial do conceito de bem jurídico. Com efeito, desde os trabalhos de BIRNBAUM e BINDING, termo inicial da história doutrinária e político-criminal do conceito de bem jurídico, que os autores não conseguem se afastar das idéias liberais que privilegiam o individualismo.
   
  As posições antropocêntricas, não há dúvidas, levam a uma exacerbação da racionalidade e a uma elevação descabida dos humanos, resultando, como já observado, em um forte egoísmo, responsável pela desconsideração da natureza. Contudo, não se pode perder de vista que a ordem jurídica foi criada por e em favor dos seres humanos. Ainda que seja breve a passagem dos homens no planeta é impossível negar sua consciência em discutir, inclusive, sua posição privilegiada no cosmos, mesmo que, às vezes, o faça por egoísmo, afinal, a autodefesa é instintiva.
   
 Parece-nos, que a posição ecocêntrica ao aproximar, mais razoavelmente, o ser humano da natureza, relativizando sua proeminência, porém o mantendo no centro, permite-nos dizer que o bem jurídico protegido nos crimes contra o meio ambiente são, sim, os recursos ambientais, não em si mesmos considerados, pois a ordem jurídica, como assinalado, foi criada pelo e para o ser humano, todavia considerados para o bem estar dos seres humanos viventes e aqueles que virão depois de nós. Esta, diga-se por importante, é uma posição adequada especialmente ao Direito Penal face à fragmentariedade que lhe deve ser inerente.

  Tal fundamentação condiz, de modo geral, com o disposto no artigo 225 da Carta Constitucional brasileira, que enfoca o meio ambiente “equilibrado” como direito de todos, vale dizer, dos humanos, titulares e detentores desse direito, inclusive das gerações futuras. 

  O bem jurídico penal ambiental, nesse contexto, caracteriza-se não por ser coletivo, mas por sua difusão teleológica-transcendente, pois que a objetividade jurídica das regras penais incriminadoras é a proteção aos recursos ambientais destinados ao bem estar de todos os seres humanos, mesmo aqueles que vierem depois de nós.