segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Iluminismo Penal e Direitos Fundamentais das Vítimas



 No IV Congresso Brasileiro de Direitos Humanos em Natal foi possível avançar na discussão acerca do Judiciário e os Direitos Humanos. A expectativa criada pela “sociedade órfã” – tendo em conta a gama de atribuições conferidas desde a Constituição de 1988 ao Poder Judiciário – não pode vingar. A multiplicidade do conflito nas coletividades complexas atuais e a conseqüente “sobrecarga do direito” trazem consigo, nessa lógica, uma “sobrecarga” ao Judiciário. Para além das questões macros, nossas preocupações devem se pautar na otimização do processo (reparem no perigo de retrocesso na pretendida reforma do Código de Processo Penal, em curso no Congresso) e de soluções como mediação, arbitragem, conciliações, etc. 

 Em Maceió, teremos oportunidade para debater, com um grande número de pessoas, todos estes temas, por ocasião do III Congresso Internacional do IBDFAM e II Congresso Internacional de Direitos Fundamentais.  Nele, em especial, problematizaremos o denominado Direito Penal Iluminista, confrontando-o com o princípio da legalidade e os Direitos Fundamentais das vítimas. A doutrina brasileira, nos últimos anos, tem laborado com uma perspectiva iluminista do Direito Penal, ou seja, tem enxergado este, muito mais, como faceta do Estado Leviatã, olvidando que o  Estado Democrático de Direito pode, valendo-se do Direito Penal, contribuir muito para o respeito aos Direitos Fundamentais das vítimas. Em virtude do excessivo individualismo de tal posição (a do Direito Penal Iluminista) pretendemos demonstrar como o incremento da violência no Brasil passa, também, pela adoção de posturas como esta.

No sítio http://www.ibdfamalagoas.com.br/ é possível obter todas as informações sobre o evento.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

JURISPRUDÊNCIA E SÚMULA*

 A palavra jurisprudência tem dois significados fortes no Direito. O primeiro diz respeito a uma “teoria do direito”, ou o próprio estudo normativo do direito. Assim é que o vocábulo é usado por Hans Kelsen (vide Teoria Pura do Direito). O segundo é pertinente ao que aqui nos interessa, ou seja, as decisões dos tribunais acerca de determinados casos.

 Neste último sentido, jurisprudência não é senão uma das fontes do direito, compreendida como fonte mediata de conhecimento e integração, porquanto, quando os tribunais decidem um caso a eles apresentado, sinalizam como as normas devem ser cumpridas naquele caso e nos subseqüentes a ele iguais ou semelhantes, estabilizando as expectativas dos jurisdicionados.

 A jurisprudência – entendida como produção de decisões sobre determinado caso pelos tribunais –, quando resta pacificada em um pretório, leva o tribunal – em um processo conhecido por “uniformização da jurisprudência”(1) –, a edição de súmulas. As súmulas são, assim, enunciados resumidos de decisões uniformizadas no interior de uma Corte de Justiça.

 Para entender é preciso se dar conta de que cada tribunal possui diversos órgãos julgadores (1ª turma e 2ª turma no Supremo Tribunal Federal, 1ª, 2ª e 3ª câmaras cíveis no Tribunal de Justiça de Alagoas, por exemplo). Estes órgãos internos podem produzir decisões díspares sobre casos idênticos. Mesmo diversas, as decisões são consideradas jurisprudência. Quando, no entanto, um órgão superior do próprio tribunal (o Pleno do STF ou a Seção Especializada Cível do TJ/AL, por exemplo) conhece da matéria e decide sobre ela, há o que chamamos de uniformização da jurisprudência, cabendo a edição de súmulas para facilitar as decisões futuras sobre ulteriores casos idênticos ou semelhantes que aparecerem para julgamento e, principalmente, para conferir maior estabilidade nas relações jurídicas ("segurança jurídica").

 As súmulas não vinculam os juízes. Isso ocorre para que não haja um engessamento das decisões, afinal uma súmula, por maior maturidade que tenha o decisum, pode estar equivocada, para além, os câmbios sociais são constantes. No entanto, em determinadas matérias, o Supremo Tribunal Federal – e só ele –, pode editar as chamadas súmulas vinculantes(2). Estas, sim, têm que ser obedecidas por todos os juízes e tribunais do Brasil, embora, como toda e qualquer expressão lingüística, elas dependam, também, da interpretação que lhe dê o julgador que as tiver aplicando. Mas este já é outro problema.

* Para os alunos do 3º período da Faculdade de Direito (FDA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
(1) Código de Processo Civil, art. 476 – 479. “Art. 479. O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.”
(2) A emenda constitucional n.º 45, de 8 de dezembro de 2004, acrescentou ao artigo 103 da Constituição Federal o artigo 103-A, que trata, exatamente, da súmula vinculante.

domingo, 8 de agosto de 2010

DIREITOS HUMANOS, SOCIEDADE E ESTADO

No final de agosto, eu e o Prof. George Sarmento estaremos palestrando no IV Congresso Brasileiro de Direitos Humanos, Sociedade e Estado em Natal, no Rio Grande do Norte. Uma boa oportunidade para (re)discutirmos o PNDH-3, Poder Judiciário, Direito Penal, Retórica, Minorias, entre outros temas, todos em conexão com os Direitos Humanos.


terça-feira, 3 de agosto de 2010

O CASO DO GOLEIRO DO FLAMENGO: É PRECISO UM CORPO?

Para que se possa iniciar um processo criminal é indispensável, como sabemos, que existam indícios suficientes de autoria e prova da materialidade. Sobre o provável homicídio envolvendo o goleiro time de futebol mais popular do Brasil, não podemos, em primeiro lugar, perder de vista a presunção de inocência. Mas, como é uma presunção o princípio da inocência não obstaculiza a persecução criminal, assegura, todavia, a obrigatoriedade da acusação produzir a prova, como garante o exercício da ampla defesa, a qual poderá demonstrar a inocência de Bruno, agora suspeito da morte de Eliza Samudio.

A desconfiança em relação ao jogador do Flamengo parece-me razoável, pois já há indicativos de sua participação no suposto delito, segundo todos os informes que a mídia nacional encarregou-se de divulgar. Indicativos ou, mais precisamente, indícios são, parafraseando Mittermaier, fatos em relação tão precisa com outros fatos, que dos primeiros é possível chegar aos segundos por conclusão lógica. Aplicando esta assertiva podemos examinar a questão com um exemplo: (i) fatos provados: 1º) um vídeo em que Eliza declara, com detalhes, agressões, tentativa de aborto e ameaças de morte feita por Bruno; 2º) o desaparecimento de Eliza; 3º) depoimentos que firmam que a moça foi morta; 4º) contradições na fala de Bruno; 5º) relações de Bruno e seus amigos com criminosos, como um ex-policial implicado com execuções homicidas. (ii) Destes fatos é possível inferir: 1º) Bruno pode ter mandado matar Eliza, ou 2º) Bruno pode ter participado da morte de Eliza.

Os indícios, desde que robustecidos na instrução criminal, chamados, então, de indícios de “primeira classe”, servem não só como base para um juízo de verossimilhança – aquele necessário para medidas cautelares, como a prisão processual – como, também, se prestam, quando unívocos, para fornecer suporte a uma condenação.

Vencida a questão dos indícios de autoria, os quais, no momento, já sustentam a possibilidade do recebimento da denúncia, indaga-se se é preciso um corpo para que haja processo e até mesmo condenação? A resposta é negativa. Imaginem, principalmente no Brasil e em Alagoas, o instrumento que forneceríamos aos facínoras se o processo penal ou a sentença condenatória fossem apenas admitidos com a localização do corpo da vítima. E as vítimas incineradas, atomizadas, esquartejadas, concretadas, deglutidas por animais, em uma palavra: destruídas? A doutrina e a jurisprudência correntes admitem, na esteira do que prescreve, ainda que timidamente, o Código de Processo Penal (art. 167), o chamado Exame de Corpo de Delito Indireto mesmo para o caso de homicídio, latrocínio e extorsão mediante sequestro seguida de morte. Os Exames de Corpo de Delito Indiretos são aqueles empregados quando os vestígios de um crime (crimes materiais) desaparecem. Empreende-se a prova da materialidade, assim, por outros meios: confissão do agente, depoimentos testemunhais, circunstâncias que rodeiam o fato, opinião de peritos, fotografias, laudos diversos, presença de cabelos, exames de DNA etc. O Corpo de Delito Indireto, como fica fácil de perceber, não é outra coisa senão a substituição de um meio de prova, impossível de ser realizado, por outro que supre o primeiro.

Em sede de Recurso Especial, no controle, pois, da jurisprudência de todos os Tribunais inferiores do Brasil, decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO. AUSÊNCIA DE REALIZAÇÃO DO EXAME DE CORPO DE DELITO. SUPRIMENTO. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS A PARTIR DAS DEMAIS PROVAS EXISTENTES NOS AUTOS. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO.
O exame de corpo de delito não é imprescindível, tanto é assim, que a própria lei adjetiva orienta como proceder em sua falta, embora, em verdade, deva-se envidar todos os esforços possíveis para sua realização. No caso em análise, não houve desídia por parte da autoridade policial, observando-se que sempre se laborou no sentido da localização do corpo da vítima, além de outras perícias.Desde o início empreendeu-se diligência com o fim de localizar o corpo de Alba, seja na região de Campinas, nos meses de fevereiro e maio de 1987, fls.58 e 83, seja no Estado de Mato Grosso do Sul, nos meses de agosto de 1987 e junho de 1988, consoante os extensos e detalhados relatórios de fls. 187/195 e 392/410. Em que pese todos os esforços, nunca se localizou o corpo de Alba. Entretanto a não-localização do corpo da vítima ou da arma e conseqüente realização do exame pericial respectivo não acarreta na impossibilidade da "persecutio criminis", posto que sua falta, conforme já frisado, é suprida pela prova testemunhal e indiciária. (STJ – Resp. n. 618.037-SP – Rel. Min. Arnaldo Esteve Lima – DJU 10.03.2006, veja aqui).

Ainda é cedo para firmar convicções. Um processo bem conduzido, lastreado na oxigenação do contraditório poderá fornecer elementos (provas diretas ou indiciárias) que levem a um veredicto seguro, lembrando sempre que só podemos nos valer da certeza – um estado de espírito que afasta os humanos da possibilidade de dúvidas –, nunca da verdade – pertencente aos deuses e incompatível com a condição humana. Se o jogador for processado e absolvido não faltarão os bordões populares clamando por “justiça”; se processado e condenado aparecerão os críticos das falhas judiciais recordando, mais uma vez, o caso dos irmãos Naves sem saber que esta é outra história.