segunda-feira, 22 de março de 2010

A LINGUAGEM DO DIREITO E O DIREITO À LINGUAGEM

 A filosofia do conhecimento nega a possibilidade da verdade, e o faz demonstrando, em um primeiro momento, o abismo existente entre os eventos e as idéias que fazemos deles e, em segundo, entre nossas idéias e a sua comunicação através das expressões. O aparato cognoscente do ser humano jamais poderá conhecer a totalidade do evento, ainda que se valha dos instrumentos tecnológicos postos ao seu dispor. As idéias permitem, tão só, uma aproximação com os eventos, nunca uma compreensão totalizadora. Quanto às expressões, por mais sofisticadas que sejam, também não conseguem exprimir exatamente as idéias, pois estas possuem uma dimensão infinitamente mais ampla que aquelas. Somos, assim, seres limitados por estes abismos instransponíveis, mas isso não nos leva à impossibilidade absoluta do conhecimento, já que podemos contar com a certeza, a qual, diferentemente da verdade, é um estado de consciência que nos afasta, de certo modo, das dúvidas e nos conduz a possibilidade do consenso.

 A moderna teoria da ciência leva em conta, não mais a descoberta de leis sólidas universais e permanentes, todavia a um modelo de saber científico mais relativo e inacabado, a um saber provisório, aberto. Não trata mais de causas, senão de outros tipos de conexões menos exigentes, como variáveis, fatores, correlações, etc, tudo isso porque o ser humano, na lição de Figueiredo Dias, "transcende a causalidade com a sua intersubjetividade", porque é sujeito do conhecimento, e, sua conduta, sempre enigmática, corresponde a razões complexas e incertas. Contudo, para a certeza, como padrão científico contemporâneo, temos, inegavelmente, a necessidade da menor imprecisão possível em matéria de linguagem. Em qualquer campo científico, ou para não ingressar na discussão acerca do que é ciência, em qualquer campo do saber, a linguagem é fundamental. Em Direito, especialmente a partir da dogmática jurídica, a linguagem significa o próprio objeto de cognição. Produzir o texto, interpretar, argumentar, decidir, implica, necessariamente, trabalhar com a linguagem.

 A construção da dogmática, baseada na fundamentalidade dos textos, vai exigir a menor imprecisão nas dicções legais com a finalidade de diminuir ao máximo possível o arbítrio dos atores jurídicos, tanto na própria feitura das leis (legisladores), como na aplicação destas (juízes e gestores administrativos). Parafraseando Couture: juízes e legisladores se movem no Direito como um prisioneiro no seu cárcere. Todavia, o rigor técnico exigido para construção das expressões jurídicas não deve, jamais, requerer um hermetismo complexo que retire a possibilidade do conhecimento das normas aos não juristas, tampouco significa a utilização de jargões empolados e risíveis ou o uso de um eruditismo vazio e piegas tão ao gosto de certos "juristas".

 O Direito configura-se, como labora Gabriel Ivo, não em um, mas em dois corpos de linguagem: o direito positivo e a ciência do direito. No primeiro, a linguagem é do objeto, referente à prescrição do comportamento humano; na segunda, a linguagem é de sobrenível, ou uma metalinguagem que descreve, ou tenta descrever, o primeiro. Em ambos, é imperativo o rigor linguístico, tanto para a salvaguarda dos direitos estatuídos, como para construção científica da experiência jurídica. O direito positivo prescreve, ainda que indiretamente, o direito de todos a uma linguagem que permita defender os seus interesses. Resta a ciência do direito expor, incessantemente, todas as possibilidades para tornar efetiva tal prescrição, ainda que se diga nestas plagas, que isso faz parte das nossas utopias.

quinta-feira, 11 de março de 2010

AS RAZÕES DO ABOLICIONISMO NÓRDICO/BATAVO

 O abolicionismo, como o próprio nome estabelece, propõe, a bem da verdade, a extinção do Direito Penal. Aqui, sem tecer quaisquer críticas, tentaremos, em apertado escorço, sintetizar as razões do abolicionismo dos noruegueses Nils Christie e Thomas Mathiesen e do holandês Louk Hulsman, este último falecido em janeiro do ano passado.

 Hulsman faz ver que há várias razões para a abolição total do sistema penal. Primeiro, o sistema não tem efeito positivo sobre as pessoas envolvidas no conflito; segundo, causa demasiados sofrimentos, desnecessários, os quais se dividem socialmente de modo injusto; e terceiro, é bastante difícil de ser mantido sob controle. Segundo Hulsman, o questionamento a ser feito é a noção mesma de crime e com ela a noção de autor. Sustenta, deste modo, que a lei cria o crime e o criminoso, pois aquele não existe como realidade ontológica. Quanto a este, por conta da influência moral maniqueísta, herdada da escolástica, é fabricado pela lei como culpado. “O sistema penal fabrica culpados, na medida em que seu funcionamento mesmo se apóia na afirmação da culpabilidade de um dos protagonistas, pouco importando a compreensão e a vivência que os interessados tenham da situação”.

 Para superar a lógica do sistema penal é preciso mudar a linguagem, não que isto baste, mas é necessário. Crime, por exemplo, é vocábulo carregado de forte conteúdo estigmatizante e deveria ser substituído por “acidente” ou “situação problemática”. Partindo do pressuposto de que se devem respeitar as diversidades pessoais, propõe o professor batavo, em substituição ao sistema penal, as regras civis da indenização, muito mais eficazes; as soluções informais de resolução dos conflitos, que, segundo ele, já são utilizadas em larga escala, dado o elevado índice da denominada “cifra oculta da criminalidade”. Para isto, necessário se faz a diminuição da intervenção estatal no conflito. Fundamental a abertura para o consenso.

 Arremata Hulsman, que com a abolição do sistema não seriam eliminadas as situações problemáticas, contudo se daria o fim das chaves de interpretação redutoras e das soluções estereotipadas por ele (sistema) impostas, “de cima e de longe, permitiria que, em todos os níveis da vida social, irrompessem milhares de enfoques e soluções que, hoje, mal conseguimos imaginar”.

 Thomas Mathiesen, influenciado pelo marxismo, vincula a existência do sistema penal à estrutura produtiva capitalista e segundo Zaffaroni, sua proposta parece pretender não apenas a abolição do sistema penal, mas, também, a extinção de todas as estruturas repressivas da sociedade. Quanto à prisão, afirma Mathiesen sua total irracionalidade em face de seus próprios objetivos estabelecidos.

 Os objetivos da prisão, que são utilizados como argumento para o encarceramento, seriam cinco, todos destituídos de racionalidade. O primeiro argumento seria o da reabilitação, que, à luz de tantos estudos já produzidos, é um mito, porquanto, para ele, já foi demonstrado empiricamente que o uso do aprisionamento não reabilita o transgressor. Segundo, a intimidação do indivíduo, ao qual o autor faz idêntica crítica, afirmando que, observados os mesmos estudos, não se conseguiu demonstrar a intimidação do infrator. Terceiro, o argumento da prevenção geral, ou o efeito preventivo da prisão que, consoante pesquisas, é muito modesto ou mesmo mínimo em grupos populacionais os quais se desejaria que fossem fortes - grupos predispostos ao crime e de constantes infratores da lei - enquanto, talvez, seja mais intenso em grupos que por razões outras são de qualquer modo obedientes à lei.

 Assevera Mathiesen que a ineficiência preventiva se constitui em um problema de comunicação. A punição seria um modo pelo qual o Estado tenta comunicar mensagens, especialmente para grupos vulneráveis no seio social. Esse método de comunicação seria extremamente tosco. A própria mensagem seria de difícil transmissão, dada a incomensurabilidade da ação e da reação. Para Mathiesen o que surpreende mais não é o efeito mínimo da comunicação do castigo desejando obter a prevenção geral, mas a persistente crença política em tal meio de comunicação primário.

 O quarto e o quinto argumentos seriam a interdição dos transgressores e a própria resposta neoclássica da prisão. No que respeita à interdição, muito pouco contribuiria para a diminuição da criminalidade, seus resultados seriam bastante modestos. Pertinente ao último argumento aduz Mathiesen que a prisão não serve de contrapeso para o ato repreensível, equalizando a balança da justiça. Mais decisivo do que a busca pela justiça, segundo ele, é “o vento político”.

 A proposição apresentada por Nils Christie possui vários pontos em comum com o abolicionismo de Hulsman. Com efeito, para Christie, o crime não existe, é criado. A rigor, primeiro existem atos, sucedendo, posteriormente, um longo percurso de se atribuir significado a esses atos. Neste processo, a distância social tem importância ímpar, pois dimensiona a tendência de imputar a determinados atos o significado de crime, e às pessoas o simples atributo de criminosas. Esta rotulação estigmatizante encobre os atos humanos considerados decentes, sendo mais difícil de ocorrer em ambientes de condições sociais melhores, como a vida familiar, por exemplo, em face das resistências criadas por tais ambientes a identificar os atos como crimes e as pessoas como criminosas.

 Christie atesta deste modo, que o melhor exemplo de solidariedade orgânica é encontrado nas sociedades limitadas, uma vez que seus membros não podem ser substituídos. Nos grandes grupos as condições de solidariedade são restritas e os papéis obrigatórios são substituídos facilmente, através do mercado de trabalho, de forma a tornar os excluídos deste mercado candidatos ideais para o sistema punitivo.

 Ao contrário do neo-retribucionismo a proposta abolicionista é descentralizadora, ou seja, não-intervencionista. Busca-se afastar o Estado da resolução dos conflitos interpessoais, remetendo para o corpo social esta responsabilidade, conquanto prevê a adoção de soluções menos repressivas pela sociedade. Sociedade e Estado não devem ser confundidos. Aquela significa os vínculos pessoais do indivíduo, suas relações de trabalho, de vizinhança, de lazer, seus interesses partilhados com os outros: sua igreja, sua rua, seu bairro, sua comunidade. Por que, indaga Hulsman, “deixar ao Estado, poder freqüentemente anônimo e longínquo, o cuidado - exclusivo - com a resolução dos problemas nascidos de nossos contatos mais pessoais? Em geral, pelo menos nos países democráticos, se procura - em nome da liberdade individual - diminuir a ingerência do Estado na vida privada. Todos os movimentos em prol dos direitos do homem querem libertar o indivíduo das dominações e opressões coletivas”.

 Para iniciação no pensamento destes autores três livros, já vertidos em língua portuguesa, podem ser consultados:

CHRISTIE, Nils. A Indústria do Controle do Crime, trad. Luís Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

HULSMAN, Louk & DE CELIS, Jacqueline Bernat. Penas Perdidas - O Sistema Penal em Questão, trad. Maria Lúcia Karan. Niterói: Luam, 1993.

MATHIESEN, Thomas. A Caminho do Século XXI – Abolição, um Sonho Impossível? In Conversações Abolicionistas – Uma Crítica do Sistema Penal e da Sociedade Punitiva, Org. Edson Passeti e Roberto B. Dias da Silva. São Paulo: IBCCrim, 1997.

segunda-feira, 8 de março de 2010

PARA O DIA INTERNACIONAL DAS MULHERES

O poema que segue fiz há muito tempo para uma mulher e dedico a todas as mulheres do nosso planeta.



Quem é esta mulher de olhar translúcido/

Por quem me apaixonei e fiquei perplexo/

Deixando, vez por outra, meu espírito estúpido/

E toda a razão e lucidez sem nexo?



Quem é esta princesa de pintura estética/

Fitando as pessoas de maneira mágica/

Imponente, segura, altiva e enérgica/

Certa, consciente do que é capaz a plástica?



Por que mira tão penetrante a máquina/

Como se estivesse desafiando a lógica?

A câmara registra sua imagem extática/

Tornando, assim, sua beleza histórica.



No fundo aparece, escura, a paisagem estática/

Despercebida, sem explicação cinética/

No entanto que ciência, teórica ou prática/

Responde ao movimento desta mulher da América?



Este impulso tem, de fato, justificação científica/

Longe dos tolos devaneios da poesia métrica/

Certamente que o comprovaria a Física/

Contundo, é mais fácil a comprovação genética.



Amo-te mulher minha, pouco importa a ciência/

Deslumbra-me tua face, e esquecendo a ética/

Louco, apressado, um herói sem paciência/

Sigo em busca de tua composição simétrica

domingo, 7 de março de 2010

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS

 No Direito e, especialmente, no Direito Penal o legislador e o juiz, se movem, no marco do Estado democrático, que tem como fundamento a dignidade humana e como objetivo o bem de todos, como um prisioneiro no seu cárcere, para usar da imagem de EDUARDO COUTURE. De modo algum estes atores podem ser arbitrários na criminalização ou mesmo na descriminalização de condutas.

 Há uma série de limites ditados pelas normas constitucionais, mormente pelos princípios constitucionais penais e os mandamentos de criminalização, a esses agentes.

 Para o legislador, os influxos dos princípios e mandamentos reportados condicionam-no no momento da feitura das normas criminalizadoras e descriminalizadoras e, para o juiz, há uma série de condicionamentos posteriores, ou seja, na interpretação e aplicação das normas editadas.

 Sabe-se que a inconstitucionalidade decorrente da contrariedade entre uma regra legal e uma regra constitucional, diante do maior grau de determinabilidade e menor grau de abstração das regras, é de verificação mais fácil, pois que depende da interpretação de ambas as regras. Todavia, a inconstitucionalidade resultante da contrariedade entre uma regra legal e um princípio constitucional, que é muito mais grave, por vezes, tem-se maior dificuldade de percepção, ante o elevado grau de abstração dos princípios. Ademais, os próprios princípios constitucionais são responsáveis pelos critérios hauridos pelos juízes para a determinação de inconstitucionalidade das normas que os maltratem.

 Os princípios constitucionais penais, bem assim os princípios constitucionais influentes em matéria penal, vistos, modernamente, como normas jurídicas, não obstante as contradições e o sincretismo existente na obra de alguns autores nacionais, determinam uma série de condicionantes não só para aplicação de leis criminalizadoras, mas também para sua própria criação. Só para demonstrar com um exemplo, não é possível que o legislador criminalize inclinações interiores por força do princípio constitucional penal da ofensividade. Ainda que se pudesse antever uma idéia criminosa, hipótese aventada na película “Minority Report – A Nova Lei”, dirigida por Spielberg e baseada em um conto do escritor americano Philip K. Dick, seria impossível prever sua materialização contextual (se haveria exteriorização e como se exteriorizaria), conforme o próprio filme deixa evidenciado ao final.

 Já os chamados mandamentos constitucionais criminalizadores – compreendidos como normas constitucionais que recrudescem o tratamento penal –, mesmo interpretados em conformidade com os influxos dos princípios constitucionais penais, rompem com as utopias delirantes do abolicionismo, centrando-se na necessidade do funcionamento do Direito Penal, ao menos para conter as tensões causadas na coletividade pelo cometimento dos delitos. A afetação dos direitos fundamentais ocorre, também, com as conseqüências das infrações, em particular as de especial gravidade. Os mandamentos constitucionais de criminalização tanto obrigam ao legislador tutelar criminalmente determinado bem jurídico, como impedem a ele de descriminalizar determinados comportamentos. O estupro pode até ser fundido com o atentado violento ao pudor, como ocorreu com a recente modificação da Parte Especial do Código Penal com a edição da Lei 12.015 de 07 de agosto de 2009, mas nunca descriminalizado.

 Não obstante, parece-me cediço que para fazer funcionar o sistema de justiça criminal, antes de mais nada, é preciso (re)legitimá-lo. Propugnamos, por isso, em nosso trabalho (Direito Penal Constitucional) uma dogmática que traduza um rígido controle nas instâncias criminalizadoras e descriminalizadoras, que torne possível, por exemplo, conter a inflação de leis criminalizadoras, as quais não têm qualquer efetividade, não ofendem bens jurídicos importantes e contribuem, seriamente, para a crença na impunidade.

 Para estes propósitos, é fundamental fixar o conceito de princípios; distinguir a teoria da metodologia jurídica tradicional, que não os considera norma, das concepções que revelam sua natureza normativa; diferenciá-los das regras, evidenciando sua posição sobranceira no ordenamento jurídico; enfocar a dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil, como sustentáculos dos princípios constitucionais penais implícitos e expressos no texto da Carta Federal.

 Os princípios constitucionais penais, assim, não são meros guias, ou indicativos de boas intenções como antes compreendia a doutrina, são normas jurídicas constitucionais cuja compreensão, no Estado Democrático de Direito, não pode ser feita isoladamente, há uma necessária correlação entre eles. A significação prática de uma interdependência entre os princípios implica que o descumprimento de qualquer um resultará em maltrato a uma superior legalidade material da Constituição que os condensa e lhes dá sentido.