quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

CORRUPÇÃO E PSICOPATIA

  
 Será que as necessidades humanas são, naturalmente, inestancáveis, como afirmava Émile Durkheim, ou elas nos são impostas socialmente, na linha defendida por Robert Merton? Não obstante as divergências entre eles, seus estudos abriram as portas para explicar o crime de corrupção pelas relações sociais de aprendizado e internalização do poder sobre as regras e não sob as regras. Embora, ao que me pareça, seja esta a linha criminológica mais acertada, os próprios autores nunca negaram a possibilidade de cargas biológicas ou psicológicas em certos comportamentos. E isso nos conduz a observar o fenômeno da corrupção através da controvertida figura do psicopata.

 Poucos são os estudos sérios para este tipo de criminoso em particular. Os psicopatas, em regra, são apontados nas infrações contra a vida e delitos sexuais – face ao mito de que a violência é atributo indissociável a este delinquente –, raramente nos crimes de corrupção, singularmente falando. Sim, por que não há negar a existência empírica daquelas figuras que, embora pusilânimes e acovardados no embate frontal – diferentes, neste ponto, dos canalhas destemidos –, utilizam da perfídia para atingir os seus propósitos ilícitos.

 Ele, o psicopata, é apontado pelos especialistas como um tipo com inteligência superior, mas uma de suas principais fraquezas é acreditar em demasia nisto: sua vaidade, preservada com demonstrações de gentileza, sedução e amabilidade, o denuncia quando explicitada as suas falhas. Mesmo decadente, acredita-se superior e é comum arrotar estultices, reverberando plágios que só impressionam os incautos de província.

 Este personagem é comum no serviço público brasileiro, principalmente nas repartições de estados federativos como o nosso. Aproveitando-se da burocracia, desorganização e falta de fiscalização da máquina estatal, ali está ele, desde sempre, urdindo vantagens indevidas, manipulando as pessoas, tramando contra o erário para locupletar-se, pois sua fatuidade o leva ao equívoco doentio, por exemplo, de supor que sua origem de parcos recursos seja incompatível com a posição que deve ocupar na escala social. Impressiona, por isso mesmo, a relevância que deposita em se fazer membro de certos agrupamentos, ainda que, como ele, empobrecidos, o que caracteriza, neste tipo de agente, a desesperada necessidade de um álibi que evidencie, cabalmente, aos outros, sua honorabilidade inexistente.

 Como raramente consegue refrear seus impulsos, nele é comum a embriaguez e a promiscuidade sexual, que o leva a molecagens e situações risíveis. Isso, somente, seria móvel para a zombaria e troça, próprias de rodas de amigos em finais de semana. No entanto, perseguido pela vigília antes de dormir, aterrorizado com os sonhos sob o patíbulo, acossado, de dia, pelas denúncias dos que não se calam, a deficiência moral do nosso personagem torna-se preocupante, quando sabemos dos seus esforços, incomuns, para tornar a todos seus iguais no que ele tem de mais sórdido. Para sentir-se normal, a mente do psicopata corrupto trabalha para fazê-lo crer que somos todos como ele. Se todos são corruptos e fingem parecer que não são, a corrupção é admissível e, portanto, “normal”. É uma tentativa, calculada, para neutralizar o sentimento de culpa; é um mote do raciocínio, para permitir a continuação de sua atuação delitiva; é o ego furtando-se à vigilância do superego; é o crime legitimando-se por meio de racionalizações.

 Apesar de todas estas descrições, ainda são bastante frágeis as concepções psicológicas acerca da psicopatia, embora deslumbrem, tal qual a tipologia lombrosiana do criminoso nato, a imaginação do homem comum e popularizem, por isso, a crença na sua existência. É certo, porém, que não há como resistir, a tentadora comparação – tal qual fez Ferri em seu “Os Criminosos na Arte e na Literatura” – com certos indivíduos que conhecemos na realidade. Bem verdade que eles não têm o glamour de um Macbeth ou de um Raskolnikoff, afinal são somente escroques da periferia, mas não se deve descurar da sua periculosidade e nocividade social.

 Em entrevista à revista brasileira de maior circulação, o psicólogo canadense Robert Hare, criador de uma – no mínimo curiosa – escala para a psicopatia, defende a prisão para o psicopata quando afirma que ele é responsável pelos seus atos (confira aqui a entrevista). É possível divergir de Hare em uma série de outras afirmações, é possível, mesmo, falar da erradicação do próprio conceito de psicopata, como, aliás, fazem ver muitos outros psiquiatras, todavia a indicação do cárcere para o corrupto, seja ele psicopata ou não, parece-me a medida correta. Para além dos critérios de justiça, não tenho dúvida do seu caráter pedagógico.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O MAGNAUD DAS ALAGOAS

 Paul MAGNAUD (1848-1926) foi magistrado do Tribunal de Château-Thierry, na França. Tornou-se mundialmente conhecido como “o Bom Juiz Magnaud”. Os seus admiradores reverberam a sua acentuada vocação para a magistratura, retidão e o uso da equidade nos seus julgamentos. Seus detratores afirmam que ele não se guiava pelas leis, que era um panfletário e excedia os limites da função jurisdicional.


 Na academia, nas ruas, nos diversos estratos sociais, no avassalador mundo midiático, que reinventa a própria realidade, parece, de há muito, perene a discussão acerca do bem e do mal. Para além da filosofia do conhecimento, que, de modo apodíctico, nos demonstra a impossibilidade de apreensão do real, os teóricos da linguagem limitam o universo somente às possibilidades das expressões, da comunicação, dos diálogos. Todavia, tal qual fenômeno que funda sua raiz no inconsciente da psique humana – nos diria Freud –, o eterno maniqueísmo, com o qual, dia a dia, nos deparamos, resiste. Esse artigo trata de um personagem que não só acredita no bem e no mal, mas que, em vida, encarnou esse dualismo e, pela sua histórica trajetória, fez uma clara opção.

 Dizem que, nos gabinetes em que trabalhava como juiz e, após, naquele que laborou como desembargador, pairava um quadro com uma citação atribuída por alguns ao alagoano Jaime de Altavilla, porém, na verdade, trata-se de uma variação do fiat justitia et pereat mundus de Ferdinando de Habsburgo: “fique sempre ao lado do direito e da justiça mesmo que o mundo inteiro esteja contra você”, era esse o aforismo. Já o acompanhava, materialmente, a idéia universal do bem contra um mal que – por irracional que pareça –, ainda que contaminasse a todos, teria de ser enfrentado. 

 Nunca acreditei em uma justiça cujo mundo precisa perecer para que seja feita, ou em uma justiça que tem contra si todas as pessoas. Dostoiewski advertia, aliás, que “uma justiça que só é justiça, é uma injustiça”. Mas, não era assim que pensava Antônio Sapucaia da Silva. Quando adentrei no Tribunal de Justiça de Alagoas em sua posse no ano de 2003, percebi que o seu discurso, que contagiava a platéia, se consolidava como se naquele salão estivesse provado um fato: o próprio Tribunal encarnava o mal e sua pena era, enigmaticamente, sua redenção: teria que se reinventar para distribuir só o bem. 

 Antônio Sapucaia, um mestiço que, como a maioria dos brasileiros, encarna bem nossa sociedade híbrida desde o início, incorporou a toga que vestiu com magistrado e fez dela uma arma em sua peregrinação contra aquilo que entendia por mal. Como juiz, sofreu quando condenou poderosos, mas os condenou. As ameaças que lhes foram feitas por “bandidos comuns e engravatados”, não obstante a falta de apoio e solidariedade, não o fizeram abdicar de seus deveres funcionais, mesmo sem ter consigo um batalhão de seguranças tão ao gosto de alguns “destemidos”.

 Em um dos mais marcantes episódios da terra dos marechais, Sapucaia enfrentou figuras tidas por fortes e influentes. Aboletados no Poder Legislativo Estadual, cada qual, segundo informes da imprensa, com uma milícia paga pelos bolsos do sofrido contribuinte, sangraram os cofres públicos, ao que consta nos jornais, em mais de R$: 300.000.000,00 milhões. Essas mesmas fontes apontavam para o suposto envolvimento de alguns com homicídios, roubos e lesões corporais praticados em atividade típica de organização criminosa. Como sói ocorre em solo pátrio, os diversos e infamantes delitos não eram motivo para qualquer temor: blindava-os a imunidade de direito e a imunidade de fato. Entrementes, do outro lado, havia Sapucaia, e sua resistência às blindagens fez dele o responsável por um dos maiores expurgos de deputados estaduais implicados em crimes que se tem notícia no Brasil. Nesta decisão, uma das últimas antes de arrebatar-lhe a compulsória, assinalou, platonicamente, que o veredicto poderia servir, no mínimo, como reflexão para os réus.

 Pena que a imprensa nacional, tão ávida em publicar as mazelas das Alagoas, não tenha tido a devida atenção para o caso, fomentando, como deveria, o debate sobre a malfadada imunidade parlamentar. Tomara que a omissão não tenha sido deliberada pela importância das instituições financeiras, em tese, comprometidas.

 Hoje, a frente do Departamento de Trânsito, o velho senhor empreende, apesar das diversas tentativas de sabotagem, uma série de medidas destinadas à moralização de um dos órgãos mais desacreditados pela população alagoana. Segue, sem parar, na trilha reta que traçou para si.

 As histórias contadas sobre Antônio Sapucaia têm sempre a mesma coloração: honestidade, retidão de caráter, observação aos postulados deontológicos da magistratura. Não há relatos discrepantes, não existem notícias sérias de outras vias percorridas. Há fatos que as palavras reverberam. Poderia objetar-se que suas características não são outras senão aquelas exigidas a qualquer homem público, mas há nelas sim uma ontologia, uma ontologia que ultrapassa a simplicidade teórica, aos deveres do cargo, e confirma-se em um ritual de condutas que servem, sim, de exemplo.

 É possível relativizar para conviver, é correto assinalar caracteres bons e ruins no universo em que se constitui o ser humano, é até imperativo admitir que estejamos condenados a um louco e contraditório mundo e que tudo, certamente, não passa de um mágico instante diante da imensidão do cosmos. Contudo, os Sapucaias são necessários para nos lembrar, ainda que não acreditemos, que as bruxas existem, e, quando vencidas, o mundo pode ser melhor.