quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O JUIZ E AS PERGUNTAS ÀS TESTEMUNHAS

O artigo que segue foi publicado pelo Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCcrim, nº 199, de junho de 2009. Minha posição, consoante será abordado, é radicalmente contrária a de muitos processualistas penais pátrios, os quais, ao meu sentir, fincaram entendimento apressado sobre a matéria, entendimento que vem, inclusive, influenciando, negativamente, a jurisprudência em formação no Superior Tribunal de Justiça (vide HC 121216/DF). O texto foi escrito, portanto, como insurgência contra essa “onda”, havida, ingenuamente, como moderna e capciosamente como fundada no sistema acusatório.

Não nos convence e consideramos como errôneas certas manifestações doutrinárias de que, com a reforma processual penal de 2008, somente caberia ao magistrado fazer perguntas às testemunhas e ao ofendido por derradeiro e, tão só, em complementação às perguntas das partes, em verdadeira abolição do sistema presidencialista de inquirição.

Para além de confundir sistemas alienígenas, especialmente o norte-americano, com o nosso, onde é característica a atividade probatória do juiz, mantida, diga-se de passagem, de lege lata – e necessária, principalmente se considerarmos as deficiências do atendimento jurídico aos mais necessitados no país –, tais interpretações derrapam na devida interpretação sistemática. Verifiquemos, pois, didaticamente, o porquê.

No interrogatório, indiscutivelmente considerado, também, como meio de prova, é o juiz o protagonista das perguntas ao acusado, conforme revela, expressa e cristalinamente, o artigo 188 do Código de Processo Penal:

Art. 188. Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante.

No plenário do Tribunal do Júri, durante a fase de produção de provas, é o juiz quem indaga, em primeiro lugar, as testemunhas e o ofendido, consoante dispõe expressamente o artigo 473, com redação já dada pela reforma, verbis:

Art. 473. Prestado o compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução plenária quando o juiz presidente, o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor do acusado tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido, se possível, e inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação.

O subsistema das testemunhas, inserido no Código (CPP, arts. 202 - 225), não deixa dúvida da fundamental participação do juiz. Percebe-se, com clareza meridiana, da simples leitura dos artigos 205, 209 e o seu § 1º, a possibilidade que detém o magistrado dele próprio ouvir as testemunhas:

Art. 205. Se ocorrer dúvida sobre a identidade da testemunha, o juiz procederá à verificação pelos meios ao seu alcance, podendo, entretanto, tomar-lhe o depoimento desde logo.

Art. 209. O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes.

§ 1o Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem.

Diante disto e de todo o sistema processual brasileiro, é inescondível tanto a possibilidade instrutória do juiz, quanto o sistema presidencialista de inquirição. Indaga-se então: de onde é que se extrai a interpretação de que o juiz perguntará por último, ou, ainda pior, de que perguntará somente em complementação às partes, se nenhuma norma assim determina? Será que é possível tal interpretação ante a nova redação do artigo 212 e a introdução do seu parágrafo único? A resposta, sem a mais remota dúvida, é não. Prescreve o mencionado dispositivo:

Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.

Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.

É de uma evidência incisiva que o legislador de reforma modificou a antiga redação do artigo apenas e tão somente para dar dinamismo à audiência, evitando, com isso, as anacrônicas “reperguntas” feitas pelo magistrado às testemunhas e ao ofendido, porquanto era defeso às partes “perguntarem”, ou, para ser redundante, perguntarem diretamente, sem a intermediação do juiz. Tanto que assim estava redigido o artigo 212 antes da reforma:

Art. 212. As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o processo ou importarem em repetição de outra já respondida.

A antiga redação, como se nota, não menciona nada sobre as perguntas do próprio juiz, como, da mesma maneira, a nova redação em nada dispõe sobre as perguntas do magistrado. A inserção, nova, do parágrafo único está estritamente atrelada, é importante observar, às perguntas das próprias partes, as quais podem ser complementadas pelo juiz ao final, acaso existam pontos duvidosos, como aliás, já se fazia, antes da reforma, na práxis forense. O parágrafo, como é cediço em técnica legislativa, apenas estar a complementar o sentido do caput. De nenhum modo ele diz respeito às perguntas iniciais do magistrado, de maneira alguma há vedação por ele, ou por qualquer outra norma, destas perguntas. Quando o parágrafo registra: “o juiz poderá complementar a inquirição”, é óbvio que se reporta a inquirição das partes e não a dele, porquanto antes já o fizera.

A interpretação para a nova redação do dispositivo não pode se esquivar da inevitável observação sistemática acima exposta, a qual não permite outra leitura senão a de que o juiz ouve primeiramente as testemunhas e o ofendido, e, após as perguntas das partes, pode, ainda, complementar a inquirição, acaso reste de tais indagações pontos não esclarecidos ou controversos. Resumindo, para qualquer tipo de procedimento, com as claras palavras de Silva(1): “o juiz faz as perguntas para a testemunha em primeiro lugar. Em seguida as partes perguntam diretamente para a testemunha. No final, a lei ainda prevê a possibilidade de o juiz reinquirir a testemunha sobre fato complementar”.

Não é de olvidar, ademais, que a regra processual – cogente –, determina que o juiz será o responsável pelo ditado ao auxiliar de audiência de qualquer das respostas das testemunhas ou do ofendido, seja quem for que fizer a pergunta. Não houve modificação alguma na redação do artigo 215, verbis:

Art. 215. Na redação do depoimento, o juiz deverá cingir-se, tanto quanto possível, às expressões usadas pelas testemunhas, reproduzindo fielmente as suas frases.

Não causa estranheza, em interpretações apressadas, a contradição de se pretender garantista e querer, ao mesmo tempo, transportar para nós, a-histórica e acriticamente, um sistema havido como antigarantista no processo penal, como o sistema norte-americano, em nada simétrico ao nosso. De há muito, adverte Ivo Dantas(2) de que não é possível transportar “um instituto jurídico de uma sociedade para outra, sem se levar em conta os condicionamentos a que estão sujeitos todos os modelos jurídicos”. É impressionante como o nosso “complexo de colonizados” ainda nos conduza a uma admiração irracional de tudo que é produzido nos países centrais, em especial nos EUA. Como os escritórios foram invadidos pelo office, nossos prédios carecem ser chamados de words trades centers, e agora, talvez por isso, se imagine que a reforma processual tenha nos legado o sistema do cross-examination.

Digressões à parte, é impossível, entre nós, prescindir da atividade probante do juiz, ainda que não seja ela a principal. Pertinente a inquirição das testemunhas, em especial, sabedores das possibilidades de condução que detém as partes para satisfazerem somente os que lhes interessa, afigura-se imprescindível a participação de um órgão imparcial nas perguntas inaugurais, máxime porquanto o faz perante as partes e dentro da oxigenação processual que não mais pode ser confundida com o sistema inquisitorial, utilizado, via de regra, somente como figura de retórica por parte da doutrina.

Quem tem vivência em salas de audiência sabe, por certo, da importância das perguntas iniciais do magistrado às testemunhas para as próprias partes. São elas que possibilitam o desdobramento da reconstrução histórica dos fatos – algo, no mínimo, difícil para quem indaga parcialmente –; são elas que permitem que as partes, posteriormente, consigam detectar os seus reais pontos de interesses; são elas que contribuem para que as partes demonstrem, posteriormente, as contradições existentes; são elas, enfim, que iluminam os passos a ser seguidos, em momento ulterior, pela acusação e pela defesa.

O juiz, asseverou Nalini(3), é “um garante da Justiça, avalista do direito, o protagonista sem cuja altaneria de pouco serve o instrumental posto a serviço do cidadão”. Ele não pode ser um espectador pusilânime da controvérsia judicial, devendo assumir, também no campo probante, uma posição ativa. Elementos essenciais da sua sentença, como as circunstâncias judiciais na aplicação da pena, os efeitos da condenação, a fixação de uma quantia mínima referente ao dano, a detecção dos requisitos das excludentes de ilicitude e de culpabilidade, entre vários outros, são de sua responsabilidade e não podem ser deixados ao exclusivo alvedrio das partes. O juiz é, inegavelmente, um agente com dever social e, portanto, um dos responsáveis pelas transformações ocorridas na sociedade humana. Sua sentença deve transportar, o quanto isso for possível, uma resposta justa para o conflito. Pretendê-lo inerte é afastá-lo a sorte da parcialidade da acusação e da defesa, é deixar seu decisum enfraquecido pela inabilidade de quem não sabe, como ele, o que se faz necessário conter, é, enfim, deixar o indivíduo sem o direito devidamente reclamado, especialmente na seara penal, onde em jogo está a liberdade do ser humano.

NOTAS____________________________________________________________________________________

1. SILVA, Ivan Luís Marques. Reforma Processual Penal de 2008. São Paulo: RT, 2008, p. 77.

2. DANTAS, Ivo. Direito Constitucional Comparado – Introdução. Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 66

3. NALINI, José Renato. O Juiz e suas atribuições funcionais. Introdução à Deontologia da Magistratura. In: NALINI, José Renato (Org.). Curso de Deontologia da Magistratura. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 2.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

DIREITOS DA NATUREZA OU DIREITOS DOS HOMENS À NATUREZA? ANTROPOCENTRISMO E DIREITO AMBIENTAL

O pensamento cristão de que só os seres humanos carregam consigo uma alma fundiu-se na cultura ocidental com a física cartesiana, a qual pretendeu demonstrar que o universo não seria um “grande vivente” como pensavam os antigos, que a natureza seria inanimada e o mundo material não teria espírito, sequer vida e até mesmo força, reduzido, por completo, às dimensões da extensão e do movimento. Ao ser humano caberia, daí por diante, todos os direitos e nenhum à natureza e aos animais, ainda que criados por Deus. Ambas as concepções, embora diferenciadas, acabaram por produzir a definição do homem como o único protagonista do cosmos, situando-o acima da natureza que goza apenas de um valor instrumental.

Mas serão os direitos única e exclusivamente do ser humano? Será possível afirmar a superioridade do homem em relação ao “resto” do universo? Por mais paradoxais que sejam – o cristianismo, com a crença da exclusividade da alma, e a física cartesiana, centrada na fé suprema na razão – levaram o ocidente a acreditar em uma resposta definitivamente afirmativa para essas perguntas. Contudo, tanto a razão, com suas infinitas conquistas, como fé, com sua experiência de transcendência, já nos permite enxergar a inteligibilidade, ou o espírito da própria natureza cujo sentido não é, de modo algum, dado pelo homem, mas por ela própria.

No momento em que vivemos, não há mais como separar os seres humanos, nem absolutamente nada, do meio ambiente natural. Os homens são apenas partes na organização de toda a vida no planeta, e o mundo só pode ser visto como uma rede de fenômenos interconectados e interdependentes. Conforme sentenciou o velho chefe sioux, “o que acontecer à terra acontecerá aos filhos da terra”. Nada obstante a confirmação científica de tais assertivas, as práticas dos homens permanecem desobedecendo a essa lógica, levando as pessoas a uma forte desilusão e a um marcado ceticismo quanto o atual estágio da civilização humana, a ponto de existirem correntes que entendem o ser humano como um impasse da natureza, fazendo ver que melhor seria se nos retirássemos da cena planetária, em razão de só sabermos destruir. Tais quais os dinossauros estaríamos, também, fadados a desaparecer.

A complexidade do nosso tempo gera as mais diversas perspectivas, entrementes não podemos perder de vista que a crise ambiental que vivenciamos tem como característica marcante o fato de ter sido por nós desencadeada. E, se foi por nós criada, temos a responsabilidade de procurar soluções para dirimir o aumento da degradação do meio ambiente, ao mesmo tempo em que devemos sanar os estragos já produzidos.

É correto, parece-me, vislumbrar o homem em uma posição sobranceira na terra, porém, como tudo na modernidade, essa posição é relativa. O ser humano agora está no centro porque gerou a crise ambiental e tem por obrigação contê-la e sanar suas conseqüências, não porque seja completamente superior aos outros seres. O direito caminha na atualidade rumo a um fundamento ecocêntrico, pretendendo uma extensão dos valores humanistas aos demais seres vivos e, em alguns casos, até não-vivos, relativizando a posição do ser humano, limitando suas prerrogativas na medida em que impõe restrições aos seus comportamentos que reduzem a diversidade e riqueza das formas da natureza, salvo, é claro, para satisfação de suas necessidades vitais.

Isso não significa, em absoluto, abjurar o fato de que a ordem jurídica foi criada pelo e para o ser humano, todavia demonstra a necessidade do dever de aproximação dos homens com o espaço telúrico, considerado fundamental para o bem estar de todos os seres viventes, de todos os que hoje habitamos o planeta e, certamente, daqueles que virão depois de nós.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O NOME EM OBRAS PÚBLICAS: O MERECIMENTO E O RIDÍCULO

O texto que segue foi escrito há, aproximadamente, um ano para um matutino local. Na época, as inaugurações de obras públicas destacavam por compadrio, como é comum no Brasil, o nome do homenageado. O artigo, para minha maior surpresa, foi agraciado com uma moção de reconhecimento e apoio pela Câmara de Vereadores de Maceió.

O Estado Democrático de Direito, ao consagrar o sistema representativo para gestão da coisa pública, erigiu como princípio reitor a impessoalidade. Não poderia ser diferente: as obrigações determinadas aos mandatários derivam da vontade dos mandantes, o povo, reveladas através das leis, e as realizações cumpridas por aqueles são bancadas com os dinheiros públicos arrecadados à custa de pesados tributos. Os gestores, definitivamente, não são iluminados que conseguem resolver, de uma hora para outra, os problemas da comunidade, pois o que colocam em prática é vinculado a regras pré-fixadas, seu espaço discricionário é mínimo e sua criatividade, quando possível, não é, senão, pressuposto para candidatura ao gerenciamento da coisa pública.

A vocação para ocupar todo e qualquer cargo público, do agente administrativo ao professor, do vereador ao deputado, do prefeito ao presidente, centra-se na dedicação. Contudo, os agentes políticos, mais do que todos os outros funcionários, são, ou deveriam ser, servidores exemplares, aptos a servir conscientes daquilo que lhes foi delegado, capazes de empreender esforços sem recompensas, pois ninguém é obrigado a ser mandatário ou gestor quando não se dispuser aos sacrifícios próprios do cargo.

Apesar do aparato legal vigente, a experiência brasileira sempre revelou práticas abusivas de autopromoção dos nossos representantes e autoridades. Deslumbrados face ao poder que detêm, ainda que pequeno e exercido em remotos rincões, paparicados pelos eternos bajuladores e empavonados com a aparição midiática, constroem estátuas e bustos caricatos. É corriqueira a designação de prédios, salas, salões, bibliotecas, ruas, ruelas, estradas e até, pasmem, banheiros públicos com os seus nomes. O que mais impressiona é a ingenuidade da perspectiva de verem suas imagens perpetuadas para a história, como se esta fosse estática e não construída em um processo dialético por sucessivas gerações. Não é sem razão, portanto, que as homenagens em edifícios públicos devem ser póstumas, pois que calcadas em longas discussões sobre o merecimento do homenageado.

Não são poucas as vozes, todavia, proclamando que não interessa ao morto a homenagem, mas só aos vivos que podem dela usufruir. Nada mais obtuso, porquanto, pretendendo justificá-la, acabam negando sua lógica. Homenagens dessa natureza se prestam ao julgamento das gerações futuras, mais capazes de aferir as grandes realizações que servem a todos como exemplo, únicas dignas de merecimento e que se sedimentarão na consciência coletiva fazendo parte das tradições de um povo. Nomes em edificações, imagens em avenidas, não encontrarão qualquer significado quando ausente a correlação das realizações da pessoa e o julgamento mais ou menos perene da coletividade. Estátuas assim somente servirão para as necessidades fisiológicas dos pássaros, sem muita demora serão olvidadas ou, mesmo, tombarão fisicamente.

As sociedades pós-modernas, ademais, não comportam as idealizações que, no passado, se fazia das lideranças. As imagens em bronze, o nome em praça e logradouros são dos tempos dos pioneiros, dos desbravadores, daqueles que forjavam as normas quando ainda não vingava o Estado de Direito. É a própria mídia que nos revela, hoje, lideranças de carne e osso, com algumas virtudes, mas, também, repletas de fraquezas. Na atualidade, a utilização dos nomes e imagens em obras públicas acaba servindo de mote para o escárnio aos detentores do poder, ante a ausência de senso de ridículo, sobretudo nas autopromoções ou nas homenagens por compadrio. Mas o risível não é punição para os néscios, já é hora de fazer valer a lei condenando-os em todas as esferas possíveis, obrigando-os, sempre, a devolver as verbas públicas empregadas de forma grotesca e indevida.